Estas dunas salpicadas pelo mar anseiam pela canção que as transformou em obra de arte, a saudade é uma eterna espera mesmo que seja por algo em vão, e é-lhe possível fugir? Impossível. Por cada passo sobre uma linha tracejada o tempo passa iluminado pelos candeeiros amarelos, as artérias da cidade são um invólucro que me separam da liberdade, apesar dos sentidos obrigatórios que convidam a partir em direcção a um pôr-do-sol californiano, ou, antes “sunset” segundo os poliglotas. Numa garagem encontram-se diversas pessoas a assistir à prestação dos Democrash que sonoramente são representantes do new wave tão em voga na década de 70 do século XX, e como tal tanto a forma quanto o conteúdo estão de tal forma datados que poderia fechar os olhos e de seguida abri-los e julgar que estou em NY ao lado da Tina Weymouth: poderíamos comentar que o groove por vezes é o mais acertado e que o tipo do saxofone é excelente e que a última canção em spoken word é a que mais se aproxima de algo autêntico. O público pede por mais, mas é contrariado por um Surfista Prateado que em tempos foi campeão nacional de long board, e que no palco mata a sede aos fãs: “Para o ano voltam!”. A banda que se segue é apresentada por Toni Fortuna: “Nós somos os D3O obrigado por cá estarem”; depois da primeira canção rock; o mesmo elucida os estrangeiros: “Thank you for being here, cheers” e brinda à presença dos mais incautos que reagem de forma fervorosa aos acordes das guitarras e à batida da bateria. “Fazemos o que gostamos”. O tema seguinte determina um motim no público. Após o qual Toni Fortuna informa: “Para quem não sabe temos uma série de convidados”. O primeiro a ser chamado: “Um grande aplauso para o Miguel!”, que se senta no banco à frente de um kit de bateria. “Too Late” faz deflagrar uma intensidade sonora que acompanha as movimentações desordenadas dos fãs. “Espero que possam dançar a próxima música”, algo que ninguém respeita. “Espero que aí fora esteja simpático e interessante”, pausa, mais incisivo: “Ou só está interessante ou nem por isso?”. Toni Fortuna parece que está em estado febril tem a camisa negra encharcada e a pele rosácea, e acrescenta assertivamente: “Uma salva de palmas para a Cristina!”, que se apropria de um teclado com oitenta e oito teclas, veste jeans rasgados nos joelhos. Os D3O transformam-se num quinteto e a canção que executam é épica de tão urgentemente perfeita; o front man Toni Fortuna parece que tem uma cabeça onde explodem azotos, os olhos salientes e a boca desvairada é uma figura dominada por uma alma endoidecida. O concerto poderia acabar aqui: mas se assim fosse como é que poderia ter testemunhado as constantes subidas de troncos nus ao palco que se atiram para os braços de homens musculados? “You are very kind! Uma salva de palmas para a Cristina!!”; “próxima ´Ai Caramba`”. Finaliza a actuação: “I want to thank you all for being here today”. O dia é apenas a antítese da noite, um alçapão que perturba a vida dos sem abrigo que se vêm desapossados dos seus recantos, e o ruído dos automóveis relembra-os de que o tempo é uma massa imparável que silenciosamente e demoradamente faz cair a sua sombra sobre a cidade atlântica. Na porta da garagem ouvem-se os acordes de uma guitarra e o pulsar de uma bateria que gradualmente ganham uma proximidade; visualizo três rapazes tímidos que se baptizaram de Sun Blossoms; encabeçados por Alex Fernandes que toca guitarra eléctrica e canta. A segunda canção é lo fi rock mas com uma progressão lenta que é perturbada pela guitarra semi distorcida, talvez a melhor da noite. Isto porque as restantes têm uma estrutura simples: bateria + baixo+ voz (inexpressiva) + solo da guitarra, as dinâmicas em vez de libertarem o ouvinte encarceram-no à monotonia, e a arte pode ter inúmeros adjectivos mas está proibida de ser entediante. Alex Fernandes: “Obrigado a todos os que estão aqui. Este festival está a ser bué da fixe para nós”. Los Black Jews que mudaram de nome para Mighty Sands, porém esta alteração não se reflecte nas suas canções pop: as guitarras são obedientes a uma textura veraneante, a voz é apenas num elemento quase decorativo dada a sua timidez; e as harmonias do teclado sublinham o carácter subtilmente luminoso que as guitarras dão continuidade acentuando uma delicadeza que não encontra eco na contemporaneidade. Uma questão de âmbito filosófico é colocada pelo cantor dotado de uma cabeleira que é como uma cortina de teatro para marionetes onde esconde o seu olhar: “Têm um objectivo ou não têm objectivo?”. Ignoro que haja uma resposta para tal questão, talvez seja meramente retórica e como tal afasto-me da pequena multidão, e no exterior pretendo confiscar cada estrela e coloca-las num frasco onde a minha mãe surda guardava os escudos para um dia fugir de casa. Relembro os ténues e infindáveis dias de Verão em que tudo estava em suspenso numa teia que vibrava aos gritos do Rato Mickey. Não há cegos nas esquinas desta cidade e nem tão pouco um acordeonista ou uma contorcionista, apenas se ouve o grasnar de gaivotas que temem a tempestade. Fujo para a garagem onde estão três rapazes no palco, Calhau e Victor Torpedo e por fim o Marquis de Cha Cha que enverga uma lingerie negra que paradoxalmente realça a sua masculinidade. Os PSICOTRONICS apresentam canções com um groove synth somadas às guitarras de Victor Torpedo e do Calhau a realçarem um vibrante e viciante rock; e a voz do Marquis de Cha Cha é a de um crooner vampiresco que não deseja o pescoço de uma prostituta mas somente a sua alma. A banda que se segue denomina-se de Pista, algo que poderia presumir que são um conjunto reggae ou de música de dança. Correspondem a um trio (bateria; baixo eléctrico; guitarra eléctrica + voz), e as canções podem-se dividir em três grupos: pré e pós grunge, e a umas outras que aparentemente convidam à dança com a guitarra a debitar solos agudos repetitivos, estas propostas poderiam ter um cunho de rebeldia contra a sociedade, não é contra esta que o adolescente se emancipa? Mas é anulada por uma prossecução de soluções estereotipadas que são levadas ao limite e consequentemente são meros postais com carimbo de Seattle e da cultura pop indie com origem em NY. Já os Sunflowers são uma dupla constituída por uma bateria ao comando da qual se encontra uma jovem loura e na guitarra um tipo farfalhudo de cabeleira desordenada; as canções são rápidas como se fossem uma ilustração de um duelo entre punks e rockers e vice-versa; as subidas e descidas do palco por parte do público são constantes. “Esta próxima música é nova”, a temperatura ambiente sobe consideravelmente; “alguém nos traga água por favor”. Há uma troca de papéis, a jovem passa para o lugar do guitarrista e este passa para a bateria e com a ajuda de um anjo tocador de harpa incendeiam o que resta da garagem. Lentamente por entre os despojos abandono o local; cruzo esquinas iluminadas pelos candeeiros eléctricos que parecem polígonos convexos nos quais me multiplico num reflexo multicolor: se aceno eles acenam, se envio um beijo eles beijam-me, se empunho um cigarro eles oferecem-me lume; tento alcança-lhos e eles cortam-me os fios manipulados por Deus. A Sua voz poderia ser a do Carlos Dias que está no palco do festival Gliding Barnacles acompanhado por Miguel Padilha e pelo Calhau. Os Wipeout Beat estão à frente de arcaicos cassios que teclam como se fossem máquinas de escrever, algo que resulta em melodias dramáticas polvilhadas pela ironia. “Vamos tocar uma musiquinha”, kraut rock que ganha uma textura western com a adição da guitarra eléctrica do Calhau, plasmam um vértice em que predomina um poder sónico que instaura o princípio do psicadelismo. “Ela é top model somos uns incompreendidos”. A canção seguinte tem um beat que convida discretamente a que o público dance e transforme a garagem num salão da nobreza promiscuamente lo fi. “Foi uma babe que foi embora e nós ficamos sem palavras”. E por fim apresentam uma canção com um beat dançante e os teclados encaixam-se alternadamente promovendo um minimalismo que institui a abstracção; o Calhau segura a guitarra eléctrica e sola, subindo as notas e deixando-as ainda a pairar no ar, desce a escala; entretanto os teclados minimais sobressaem assim como o beat; e parecendo impossível sola novamente dominando o braço da guitarra como se fosse a extensão da sua natureza. “Baby”. Épico. Carlos Dias lança o repto: “A seguir Parkinsons; e vamos ver se são capazes de fazer melhor”. O Surfista Prateado perante a inércia dos Parkinsons que os impedem de subirem ao palco, entra no camarim com um copo de balão com vinho e no imperativo dispara: “Olhem que vocês não tocam”, e olha para o copo como se fosse uma bola de cristal e desaparece à procura de uma onda utópica. Afonso Pinto perante a eminente tragédia determina: “Ah vamos! Começa tu Paulinha [Nozzari”] e o palco é tomado pelo Victor Torpedo e por Pedro Chau e instalam um vertiginoso compêndio de violência doméstica. “Allwright!”, “pessoal está todo lá atrás cheguem-se à frente”, convite de homem de tronco nu com o peito e os braços tatuados moldado a escopro pelas ruas de Londres. A canção seguinte: “1-2-3-4”, é tão visceralmente punk: um bloco de indestrutível beleza. “Thank you very munch you are very kind”; e a guitarra e a bateria ditam o mosh produzido pelo público. Afonso Pinto ainda não está satisfeito com a violência que decorreu até ao momento, e insiste a suar: “Pessoal como é? Cheguem-se à frente. Come closer!”, promete a “few bytes” e arrota como se estivesse a digerir a multidão. Em “On The Wee Hours”, a guitarra eléctrica de Victor Torpedo é o denominador comum dada a sua técnica de transformar um rif nos fundamentos da canção. O público que está compacto e por isso é incapaz de se movimentar e naturalmente são vítimas da fúria do Afonso Pinto: “Fuck you! Allwright!”, e é provocador: “Will you like to hear a jocke?”. “Streets of London”; as pessoas repetem-se no palco a subi-lo e a desce-lo num baptismo de voo; segundo os caprichos da guitarra eléctrica de Victor Torpedo e da potência de Paula Nozzari e do teclado omnipresente do Jorri; complementados pelo Pedro Chau tão discreto quanto essencial a delinear a estética punk. “Body and Soul” é uma carnificina entre estas duas entidades que traumatiza o público que é cuspido do palco; o Surfista Prateado lança-se para a sua onda imaginária e é transportado alegremente por entre a multidão, regressa ao palco e é benzido pelo Afonso Pinto. “Where can my babe be?” e a anarquia ganha a forma de um grupo de jovens que saltam e se empurram enquanto outros surgem do palco: onde há figurantes de tronco nu que festejam a liberdade da razão, confiscada pelos Parkinsons que são simultaneamente uma entidade que aliena e que perturba, no cimo da pirâmide está a libertação da dor que institui a desordem e que é violentamente expressada pelo vulgo. “Obrigado aos Wipeout Beat”. “Surfers raise your hands”, alguns erguem o braço, “Their`s few! I was expecting a few more!”. Durante “Good Reality” instalam-se no palco diversas pessoas, desde uma senhora que poderia estar em casa a fazer croché para a neta assim como diversas crianças, mas estes não interrompem as constantes subidas ao palco. O Afonso Pinto endereça os “happy birthday to Carlos Mendes”, e Victor Torpedo agradece ao aniversariante que também dá pelo nome de “Calo” que foi o baterista “número sete” dos Parkinsons, a oitava é a imparável Paula Nozzari. Afonso Pinto agradece o convite ao Surfista Prateado: “Eurico Gonçalves”. “New Wave” não é imune às investidas de inúmeros figurantes, entre os quais uma criança que alguém coloca sobre o bombo e põe-lhe nos braços a guitarra eléctrica de Victor Torpedo, mas o único que sabe que ele é canhoto é o Calhau que sobe ao palco para corrigir a posição da guitarra. A criança segue o ritmo da canção fixando a mão num acorde e o baixo do Pedro Chau acompanha-o assim como a bateria de Paula Nozzari e o Afonso Pinto canta, ouvem-se aplausos e uma ovação deflagra quando abandonam o palco do Gliding Barnacles. A luz negra é uma cortina de fumo que tento tanger como se fosse um bardo embriagado a entoar uma serenata a uma janela gótica entaipada. Não acredito que o corpo seja somente um invólucro para a alma e que nesta apenas possa existir música, por vezes duvido que estas mãos que estão a escrever pertençam a um ditador Pop. Frankie Davis é uma adolescente loura com calções e pernas depiladas, e canta e toca a guitarra acústica com muita assertividade; uma canção chama-se “Superman” que é dedicada ao seu “dad”, um super herói de banda desenhada adorado pelas famílias brancas americanas que estão do lado dos conservadores. No intervalo da sua actuação o Surfista Prateado chama diversos surfistas ao palco e olha para uma “manhã de nevoeiro” onde surgem rapazes de fato de borracha sobre pranchas de surf a deslizarem no mar a enfrentarem as brumas da memória.
Gliding Barnacles, 31 de Agosto; 1, 2, 3 e 4 de Setembro @ Garagem Peninsular
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