quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O Arranca-Coração

À chegada a uma terra suspensa num nevoeiro inexistente presa à encosta do rio Douro, estaciono num lugar proibido para não atrasar ainda mais a minha interminável viagem que começou em 1986, tomara que a tivesse iniciado em “1984” mas não me foi permitido pela idade das trevas. Há quem diga que a Idade Média era uma época em que o Sol girava em redor da Terra e que as guerras eram Santas ou que as caravelas portuguesas descobriram o percurso marítimo para a Companhia das Índias. Os marinheiros eram figuras de barro soldados ao porão e o comandante era um velho ébrio que séculos depois lideraria o Estado Novo, preocupava-os o cabo das tormentas e que não tivessem direito à ilha dos Amores onde decorreriam violações promíscuas. À janela deixei a Margarida com vista para uma lua negra, estranhou a minha partida mesmo que lhe tenha dito que ela era a minha flor preferida, prometi que não iria depositar flores à porta da Pérola Negra. Meu amor se fechares os olhos e surgir um cavalo de Tróia, “posso ser mau ou vilão?”, prossegue o teu périplo sem medo nesse universo estranho, ouve o piano dramático que marca a melodia com uma temerária finitude, “liga, liga”, e que representa uma paisagem onde nunca decorreu o pôr-do-sol. Durante o qual estaria a dançar uma bailarina numa caixa de música com espelhos que a reflectiriam num esplendor de beleza associada à pureza que somente se conhece durante a infância. “Posso ser mau ou vilão?”, se este aparecer durante a turbulência dos teus sonhos dispara sobre o auto-retrato à óleo do Mestre O Arranca-Coração, se lhe tirares a máscara e descobrires o meu rosto deixa esvair-me em sangue como é suposto a quem é um terrorista, se transbordar definitivamente desta concha vou ouvir o coro do muro das lamentações: “A minha flor preferida já nem é a Margarida”. “Achas que alguém se importa se roubar mais um milhão?”. Parece que é uma canção de embalar almas que derradeiramente recusaram o céu e o inferno, e nessa terra cultivaram um jardim onde florescem os filhos dos Chorões. “A minha flor preferida já nem é a Margarida”. Discrimino os insaciáveis sentidos mas sou impossibilitado por este corpo esculpido à carne e a ossos, “condecorado pela nação”, vendado diante de um pelotão de fuzilamento que está carregado por balas rasgadas para fazerem sangrar a minha carne tornando-a mais tenra. Os acordes negros e irremediavelmente prescritos para escurecer a sala Suggia gradualmente encarceram e libertam a imaginação, “liga, liga”, “tens medo que alguém nos siga?”, e o andamento associa-se a uma cadência quase religiosa: “Roxa amarela ferida”. Se um dia recordar esta canção será para chorar ajoelhado num penedo que aguenta a violência do mar mas nunca a de um beijo, e que as minhas lágrimas salguem o oceano Atlântico. Escrevo o meu testamento na areia e é consecutivamente apagado pelas ondas numa cadência fúnebre, escusam de velar pela minha alma porque não foi baptizada nem acendam o farol à procura da minha carcaça: “É a história de uma ferida, três anos numa concha…”, perdida num coral de escamas…

Os GNR, “O Arranca-Coração”, tema incluído na biografia comemorativa dos trinta e cinco anos: “GNR—Onde Nem a Bela Dona Cresce”, 20 de Setembro, Sala Suggia @ Casa da Música.

Dedicado ao Paulo Borges.