quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Ensaios Sobre Literatura

As sombras instalam-se semanalmente como se fossem velhas amigas daquelas que usam dentes postiços e perucas de palhaço, que nos reflexos dos cromados que emolduram um espelho se revêem jovens e belas. Haverá arte mais tonta do que ver uma imagem que não existe, que é produto da concepção produzida pelo cérebro, mesmo que nesse reflexo surja o “eu” que é redutor pois corresponde a duas vogais a acasalarem. Inevitavelmente a metáfora é o único meio para me aproximar do “eu”, ao qual se exige que não cristalize como uma teia de aranha que cobre o meu rosto e o distorce numa máscara. No palco do Salão Brazil encontra-se o Bone Zone que poderia ser o nome de um ditador na Joy Division, mas somente corresponde a um homem de meia-idade magro, veste um fato preto e uma bota branca com uma pandeireta e a outra que é preta toca nos pedais; está sentado com uma guitarra eléctrica ao colo que debita blues e por vezes mescla-os com o rock, mas a repetição de estruturas estereotipadas transformam-no num músico desfasado da contemporaneidade Pop; as canções que roçam a criatividade são as que têm uma guitarra em loop e a de Bone Zone em tempo real. Quando este parte uma corda da guitarra; Victor Torpedo acorre e empresta-lhe uma outra e com a de Bone Zone senta-se no degrau que forma o palco e substitui-a, enquanto Bone Zone canta um amor frustrado, aparentemente está habituado a ser servido por um Rei. Bone Zone surpreende ao convidar o Pedro “Calhau at sax” e de seguida sublinha displicentemente: “It`s time for our sax player”; mas o espaço que dividem nunca é satisfatório porque Bone Zone requere-o maioritariamente e nessa medida não há comunhão. Bone Zone durante a sua actuação ainda se permitiu a meter a mão no interior das calças para tocar no pénis ou pontapear o seu copo para o público despojando o palco do seu carácter litúrgico. Quando acaba o seu tempo de palco não acede por duas vezes aos pedidos do Carlos Dias para que o abandone, tal comportamento apenas revela que este pobre e triste ditador deveria ser remetido para o esquecimento. No hall do salão avisto sob uma luz clara um Canibal de olhar ameaçador que parece vir desgastado do concerto do Bone Zone, não pede lume ou tão pouco se senta ao meu lado e desaparece para uma ficção do Conrad. As paredes brancas sofrem da falta de desenhos rupestres e de à superfície de canos enferrujados ou de tijolos que escondam ratos aficionados por um flautista infantil. Perante tamanha carência apenas me resta espreitar o concerto dos Alien Church que têm a Kart Morg na bateria de vestido de veludo preto onde atracam os seus cabelos de espigas selvagens. Na primeira canção citam o rock progressivo mas manchado pelo noise e a voz do Mr. Atkins é um eco processado em que não se entende o que canta, salienta-se como um elemento perturbantemente kitsch. A segunda canção é tão curta e desorientada que não dá tempo para ser devidamente avaliada. A terceira apresenta um twist rock, “twist”, “Why?”, que se metamorfoseia num ska tóxico destinado a consumidores de MD. A quarta tem umas maracas providenciadas pelo Mr. Atkins sobre o ritmo funk e a guitarra eléctrica de Jed Lic II deflagra em delay, e o cantor lê o Velho Testamento: “EIOOO”. A quinta é de uma infantilidade atroz qual nursery rhyme para adormecer ratos; gradualmente os Alien Church transformam-se numa banda de figuras fantasmagóricas. A sexta tem um ritmo dois por dois e a voz em eco do Mr. Atkins; e a gramática que implementam é sublinhada pelo sintetizador de igreja descrita no “Processo” de Franz Kafka. Mr. Atkins ergue os braços dançantes e no ombro direito consta um terço brilhante, levanta a Bíblia e evangeliza a plateia: “OOOO”. O microfone do Jed Lic II é tomado por Bone Zone que vocifera e esperneia como se estivesse a vir-se numa vulva de uma rã desenhada pelo Walt Disney. A bateria da Kat Mog e o baixo eléctrico de V. tentam acompanhar a cantoria do invasor que se faz passar por um diabrete puramente exibicionista. À sétima ressaltam cores negras providenciadas pelo baixo de V. que emoldura a canção numa janela gótica. A oitava parece desconjuntada ritmicamente algo que não a arruína, antes, devido à sua esquizofrenia parece uma tela pintada por Syd Barret que posteriormente a queimaria. A última canção dos Alien Church tem um órgão kitsch processado para num baptistério com painéis do Jeff Koons, o crescendo a que incorrem é uma unidade perturbantemente anti-esotérica que é sublinhada pelo theremin manuseado por Mr. Atkins. Posteriormente dada a violência da frequência rítmica associada ao baixo de V. visceralmente perpassam um campo de refugiados punks: “He he”; e sobre este tumulto o órgão essa voz cada vez mais perturbante sobressai e emancipa-se a guitarra do Jed Lic II num solo em delay no meio do público. “Wah”, a progressão é um elixir tóxico de tão negro e o theremin exaspera como um ataque de pânico, “oooo”, num fim épico. Acrescento ao silêncio mais silêncio num encaixe perfeito e acendo um cigarro para me abstrair da sua companhia, filho de tudo o é que efémero e que se revê num vazio intransponível e anseio pela anulação da consciência. Quando inspiro o fumo e o expiro formasse uma ondulação que desaparece consumida pelo oxigénio, aceno para uma figura distante que julgo conhecer de um quadro antigo mas não obtenho qualquer resposta, ela mistura-se com a multidão que espera pelos Subway Riders. Carlos Dias encarna em Carlos Subway e através da sua voz grave apresenta a família: “Victor Subway, Calhau Subway e Chau Subway e o nosso elemento mais bonito o Augusto Subway”, que se encontra atrás do seu sintetizador. A primeira canção “é quase parecida com a que temos tocado. As próximas têm arranjos novos que fizemos há bocadinho”. “Mono Stereo” tem como centro a repetição de uns acordes viciantes implementados pela guitarra eléctrica de Victor Subway, o saxofone de Calhau Subway insurge-se e a canção ganha uma dimensão dramática que é prolongada pela progressão. Carlos Subway: “Mono stereo”, e a tarola mecânica do Chau Subway infectam-na com violência. Calhau Subway: “Mono stereo”; transformam-na num contínuo repetitivo destrutivo com a ligação à terra da guitarra de Victor Subway, “mono stereo”, e o remoinho dissipa-se no auge da sua construção. Carlos Subway divaga: “Esta que se segue é uma história de amor falhada. Todas as nossas músicas são histórias de amor, esta música chama-se ´Adele`”; “´Adele` é em francês soa mais intelectual”, mas o teclado do Augusto Subway está bloqueado e dessa forma é incapaz de introduzir o respectivo loop. Perante este impasse Carlos Subway recorre a um dos “clássicos” dos Rolling Stones “(I Can't Get No) Satisfaction”: os acordes instaurados por Victor Torpedo não são decalcados aos do Keith Richards, introduz uma perspectiva mais negra e nessa medida ainda é mais visceral que o original; “I cant`t get no”; sobre estes surgem as maracas do Calhau Subway que são tão kitsch quanto latinas, e dança e canta como se fosse o Mick Jagger: “No, no, yeah yeah”; Carlos Subway: “Yeah, Yeah”. “And I try, and I try”; e a cadência mecânica do Chau Subway ganha preponderância e somente pára quando a tarola cai. A seguinte já fora anteriormente apresentada por Carlos Subway: “´Adele`”, que tem por base um loop do sintetizador sobre a qual se dispõem os restantes Subways, e há espaço para que a voz de Carlos Subway se exprima através de uma sedução incomensurável e que o seu corpo hirto sofra pela bela: “Adele, Adele, Adele”, como se estivesse sob o domínio de uma obsessão que o conduz para um falhado suicídio. A quarta canção tem por princípio uma sátira ao funk providenciada pelo teclado de Augusto Subway e pela tarola de Chau Subway: “Jamaica”; “hight so hight”, a oralidade de Carlos Subway remete para as vozes graves e intoxicadas dos jamaicanos que apregoam erva na praia às turistas em topless, e a guitarra de Victor Torpedo está tão pedrada que se ouve num eco distante. O porta-voz dos Subway Riders informa: “Não fazemos dedicatórias às canções”, mas abre uma excepção em relação a um amigo, “nosso que foi para outro sítio e vamos cantar esta música para ele”. Quem será? A quinta canção tem um ritmo pausado e uma melodia fúnebre que simultaneamente realçam um tépido e deslumbrante kitsch; Carlos Subway: “I love you so” e Calhau Subway responde-lhe: “Auaua”. Acentuam uma tristeza que de tão dolorosa que somente deve ter origem no absurdo Pop; Carlos Subway: “I love you so, I love you so”, determina ao público que se solidarize com a sua dor, “abraçai-vos”, “oooo I love you so”, Calhau Subway: “Ouuu”. Surge no palco Bone Zone que é discretamente corrido pelo Calhau Subway, que por este acto mereceria ser condecorado com a Ordem de Mérito. A sexta canção corresponde a três notas que como bolas de sabão eclodem no ar e Calhau Subway dá-lhes corpo de palavras: “Pupupu”; as três notas são tão kitsch quando desconcertantes: “Pupupu”, após a qual Carlos Subway esclarece que “estamos quase a acabar”. A sétima canção tem um beat repetitivo sobre o qual a guitarra eléctrica de Victor Subway introduz uns riffs semi-distorcidos que repetidamente promovem a escassez de felicidade e as maracas do Calhau Subway pigmentam-na de uma curiosa e delirante festividade kitsch; Victor Subway não pára de debitar o tal riff mas mais alto e mais rápido. Carlos Subway: “James Brown”, e Calhau Subway no saxofone sola numa efervescência discursiva desconstrutivista, “James Brown”, e Calhau Subway insere diversas vezes o microfone na boca do saxofone num felácio trans-rock. A última canção segundo Carlos Subway sofre do seguinte: “Não sabemos a letra”, e, “ainda por cima não é nossa”. O synth beat presume que se está perante o kraut e o rock advém da guitarra eléctrica de Victor Subway que é entrecorta com a de Calhau Subway arquitectando um núcleo inqualificável. Victor Subway abandona a guitarra e segura num microfone para o qual simultaneamente canta com o Carlos Subway: “Stereo”. Soam as maracas libertinas do Calhau Subway enquanto domina o synth beat do Augusto Subway e a anarquia encontra finalmente a sua definição na efemeridade conferida pela performance.

Subway Riders, Alien Church, Bone Zone, 4 de Outubro @ Salão Brazil

O Meu País Inventado

Vivencio uma daquelas tardes de Setembro em que o calor é algo ténue e por essa razão efémero. No palco da Praça da Canção em Coimbra a ensa...