terça-feira, 3 de janeiro de 2017

The Moonstone

São 23h25 do dia 31 de Janeiro de 2016 e os GNR-- e os seus três músicos Samuel Palitos (bateria); Tiago Maia (guitarras/voz); Paulo Borges (teclados/voz)-- sobem ao palco instalado no Largo da Portagem perante uma multidão que os recebe com aplausos efusivos. “Sangue Oculto” é a primeira canção a ecoar pelas ruas da baixa de Coimbra; seguem-se “Popless” e “Vídeo Maria”, sem as quais o imaginário pop dos portugueses seria consideravelmente pobre. Através das quais os GNR assumiram-se como arautos de uma (nova) pop que não se encontrava gizada no interior ou exterior deste reduto à beira mar plantado, isto é, estas três canções são clássicos por direito próprio e consequentemente alargaram as fronteiras da pop, onde não é permitida o preconceito de quem não reconhece no kitsch-- isto mais no caso do “Sangue Oculto”-- uma estética. Para além de ser impossível ignorar que estão devidamente actualizadas, erguendo uma estrutura que se compadece com um refinamento rítmico e melódico, por exemplo, em “Vídeo Maria” somente o sintetizador remete para o passado, ganhando laivos de um psicadelismo pop que continuamente enfeitiça o espectador; à “Sangue Oculto” é-lhe acrescida o rock; “Popless” tem traços de pop mas com contornos psicadélicos. Parece absurdo que os GNR desbaratem três clássicos em menos de quinze minutos (?), a verdade é que são autores de um repertório profusamente rico de tão heterogéneo, sem que daí houve-se decorrido uma quebra na originalidade e como tal não dependem exclusivamente dos sucessos impostos pelas rádios. Após, “Popless”, Rui Reininho ironicamente faz menção à noite em que nos encontramos: “Vamos mudar de ânus… salvo seja”. As três canções que se seguem: “Caixa Negra”; “Triste Titan”; “Cadeira Eléctrica”-- editadas em “Caixa Negra” (20015), o último álbum dos GNR-- têm estruturas retro e melodias kitschs; pode-se destacar “Triste Titan” de uma beleza pop transbordante, ou, um relicário com espelhos convexos. São 23:55 e Rui Reininho declara: “Deixem ver no meu relógio”, se dá para tocar, “mais uma ou mais duas?”. Após, “Cais”, Rui Reininho e Jorge Romão fazem a contagem decrescente acompanhados pelo público para as 00h00, e o fogo-de-artifício eclode e há garrafas de espumante Carl Jung a espumarem para os copos dos músicos que brindam ao ano novo; Rui Reininho ergue a sua flute à: “Edilidade e à academia”. Durante, “Efectivamente”, e, “Las Vagas”, o fogo-de-artifício prossegue atrás do palco e sobre o Mondego; se a primeira é apresentada na sua vertente pop (apesar dos seus trinta anos é uma das canções chave na carreira dos GNR, foi através desta que os portugueses perderam os preconceitos em relação à lírica do Rui Reininho, retirando-os de um reduto cultivado pelos intelectuais lisboetas). “Las Vagas” é um portento psicadélico pop-rock de tal forma visceral que associado aos strobs é magnamente estonteante, é prolongada num devaneio quase niilista que a coloca num pedestal do épico. Rui Reininho assinala o cheiro a pólvora queimada fruto do fim do fogo-de-artifício através de um absurdo: “Ai que cheirinho a napalm…” “Morte ao Sol” é das canções mais dramáticas assinadas pelos GNR, dividida em duas partes: a primeira é um slow obscuro, a subsequente transborda em dor e a tragédia. “Impressões Digitais” através da qual os GNR ditaram as regras da pop; tem uma estrutura pop com detalhes synth e o seu groove pop-rock não se cristalizou perante o ditador comum a quem baptizaram de tempo; algo que é transversal à obra dos GNR; que festejaram os trinta e cinco anos de carreira em 2016 com dois concertos comemorativos em Lisboa e em Guimarães; uma biografia oficial (“GNR—Onde Nem A Bela Dona Cresce”, da autoria do Hugo Torres, que contém a canção, “O Arranca-Coração”). Rui Reininho altera um dos termos no verso de “Impressões Digitais”: “Faz-me um favor estou fodido!” Rui Reininho antes da canção seguinte ironiza sobre a temperatura gélida que é de facto muito agreste: “Está um calor aqui em cima! Mucho calor caralho!” “Ana Lee” é de um exotismo pop que é impossível descobrir num mapa desenhado a giz sobre a ardósia. Rui Reininho antes da décima terceira canção opina: “A Figueira [da Foz] também é bonita…” “MacAbro” remete para a obra do Kurt Weill com uma poesia repetitiva e absurda, e o coro é de marinheiros embriagados que navegam à vista de uma costa imaginária. “Asas” aparenta uma canção de amor pop marcada por uma esperança vã. Rui Reininho antes da “Pronúncia do Norte” apresenta os seus dois companheiros: “Jorge Romão” e “Tóli César Machado”; a canção é um hino porque sintetiza o carácter irredutível de uma alma mas que é paradoxalmente trágica. “Sexta-feira (um seu criado)” é uma ode pop-rock e liricamente versa uma festividade proporcionada pelo excesso etílico. “Nova Gente” apropriam-se do ritmo de baile de aldeia e a poesia do Rui Reininho é letal: “Venho de uma ilha sem sabor tropical/ A fauna é variada demografia acidental/ Não é de origem elevada difícil de recensear/ É mais que uma ilha é quase continental/ Não está cercada por água mas não faz mal/ Quem a rodeia por vezes é a força policial”. Os GNR abandonam o palco e resguardam-se do frio nos camarins e tentam recuperar forças para o primeiro encore. “Dunas” é recebida com uma alegria desmedida por parte do público por reconhecerem-lhe o poder de descritivo de um dia de praia na costa atlântica. “Telefone Pecca” é tão pop quanto genial na forma como a melodia revela a tensão que deriva do desejo na poesia do Rui Reininho; antes que esta acabe acrescentam “Inferno” um clássico brasileiro que apresentam contemporaneamente rock. Os GNR abandonam o palco e regressam para tocar, “Sub 16”, e, “+ Vale Nunca”, liricamente contextualizam as personagens em estágios de desenvolvimento crítico, musicalmente são intemporalmente pop. Os GNR e os seus três músicos deslocam-se para a boca de cena e abraçam-se e vergam-se perante a multidão que durante duas horas sofreou com as temperaturas negativas.

“Caixa Negra”, GNR, 31 de Dezembro-- 1 de Janeiro @ Coimbra

In loving memory of George Michael