A chave de sol é introduzida numa fechadura de um corpo que explode e os seus estilhaços formam um quadro de figuras que se mantêm estáticas sobre um fundo de meios-tons que representam enigmas dilacerantes por se intrometerem num universo onde reina a dor associada à irracionalidade; encontro-me no Salão Brazil em Coimbra à espera dos concertos de Canja Rave e dos Holy Fanda & The Reverendes têm como ponto central a Paula Nozzari, que desde chegou à Capital do Rock tocou bateria com os Subway Riders, The Walks, a jigsaw, The Jack Shits, The Parkinsons e com Mike Up ao qual administra musicoterapia; à esquerda da tela há uma criança de braços abertos que jaz inconsciente e em seu redor constam os braços da sua mãe e o seu pescoço expande-se verticalmente e abre a boca e sai um grito que se propaga mas não encontra reflexo na cabeça de um touro, que simboliza uma nação dividida por Franco o ditador do bombardeamento à Gernika em 1937; os primeiros a subirem ao palco são os Holy Fanda & The Reverendes que para além da Paula Nozzari são formados pelo cantor Holy Fanda que empunha uma guitarra e pelo baixista Nick Jennings, e o que representam é o rock da América rural da década cinquenta/sessenta do século XX e os géneros passam pelo country (pop), bluegrass, (rock), rockabilly, algo que é executado segundo parâmetros rígidos que os impedem de os recriar e consequentemente incutir-lhes novas e diversas perspectivas, a estas devem-se subtrair três canções que se destacaram pela sua pertinência, há a sublinhar o exotismo quando o cantor se expressa em checo e a codificação da sua poesia é de uma beleza estranha; sob o plano inferior um corpo divide-se num vácuo e os braços separam-se sem que vertam sangue e o seu rosto parece que estrebucha ao lançar um grito de grifo condenado ao silêncio soterrado sob escombros de alvenaria com paisanos, e ao centro há figuras que se transmutam sem que haja uma concretização da sua fisionomia que conduz o olhar para um braço que segura um archote que tem a chama numa redoma de vidro que não ilumina em seu redor, sobre as quais delineiam-se figuras que se anulam ou se acrescentam e são finalizadas pela cabeça de um homem transmutado num cavalo mutilado pela dor e à sua frente um pássaro de pescoço esticado com mandíbulas de uma forquilha afinca sobre o céu cinzento onde pende um olho que tem como pupila numa lâmpada; o dueto Canja Rave divide-se pela Paula Nozzari (bateria/voz/melódica) e por Chris Kochenborger (guitarra/voz), as canções têm inúmeros desvios estéticos que surgem como se fossem o subtexto e gramaticalmente remetem para diversos subgéneros que são apenas a raiz de uma estrutura reverberantemente rock, segundo um pendor lúdico que deriva de uma criatividade tão eficaz quanto por vezes desconcertante, entrecruzam o contemporâneo e o retro que equilibram majestosamente, há ainda a salientar a destreza com que as duas vozes ora se complementam ou simplesmente dialogam por vezes num romantismo kitsch; que é devidamente exemplificado quando convidam a Rita Joana a cantar em português com o Chris Kochenborger; quando este usa o inglês parece uma voz radiofónica que oferece às canções uma perspectiva sobre uma geografia que remete para bombas de gasolina desactivadas num deserto de filmes do John Wayne, por vezes no intervalo diz piadas como se estivesse a falar para uma audiência submissa à bandeira dos Estados Confederados dos EUA; na última canção convidam os dois membros dos Holy Fanda & The Reverendes e transcrevem uma massa que sintetiza um rock de uma urbanidade ficcional de tão transgressor; e na direita do quadro desloca-se curvada com os seios a penderem nus uma mulher grávida de uma bebé fecundada que arrasta os seus braços pesados tentando contrariar o tempo que a consome em pulsares de sangue com espinhos e olha em direcção a um céu insensível à sua desmesurada dor, seguidamente irrompe verticalmente uma figura que lança os seus braços e abre a boca e os seus olhos não filtram a realidade e parece que é esfaqueada por um vértice do qual se constrói um edifício com uma janela aberta e no topo umas barbatanas de tubarões rasgam o céu.
Canja Rave + Holy Fanda & The Reverendes, 25 de Maio, Salão Brazil
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