Num campo de futebol na Batalha as pessoas ruminam cadáveres confeccionados por cozinheiras gordas de bata e touca para cobrir as falhas na penugem; e há uma senhora num palco mínimo a cantar sobre um groove kitsch, “você me deixa louco”, tiro-lhe uma fotografia para o Instagram; uma doçura acutilante transportava-me para um tempo em que a sua luz guiava-me por entre crisântemos e me cobria com uma felicidade instantânea mas quando tomava consciência da sua influência desvanecia-se num suspiro que me confiscava a noção da realidade e os meus passos eram como as gaivotas ou as andorinhas e os grifos que lutavam contra a nortada, “você me deixa louco”; estou no backstage dos exuberantes GNR que se preparam para subir ao palco “às dez e vinte”, o Rui Reininho está a conversar com o Paulo Carvalho e o Tóli César Machado e o Jorge Romão estão a relaxar antes de enfrentar a multidão que os espera ansiosamente; e ainda são gravados pela Joana Sequeira Duarte para promoverem o concerto que se irá realizar no Barreiro; a sua gargalhada libertava-me da toxicodependência que me obrigava a vogar numa jangada de haxixe sobre as ondas atlânticas e a ocidente o sol estava suspenso em vermelhos e amarelos tórridos como se o fim nunca tivesse fim e como se fosse o momento mais bonito do dia, “você me deixa louco”, e as rochas eram paredes de aço em que o mar encontrava um reflexo difuso e as algas e os limos substituíam as folhas da sua cabeleira solta que emoldurava o seu rosto num retrato psicológico naturalista que não era somente um incêndio de chamas canibais que me consumiam em cada labareda ou um manancial de ciprestes que cresciam selvaticamente em meu redor como se fossem prenúncio de que terei que voltar para a caverna onde grafitava desenhos rupestres e saltava para cima de um potro que me encaminhava para um destino que tinha uma direcção indeterminada e que era incapaz de dominar; sobem ao palco os três cúmplices dos GNR: Tiago Maia (guitarra eléctrica/voz); Samuel Palitos (bateria/voz); Paulo Borges (teclados/voz) e é este que insere os acordes do poema-canção “Bem-vindo ao Passado” que é um convite irresistível à multidão para entrar num universo em que domina uma contínua e elegante Pop: “Vídeo Maria”; “Efectivamente”; “Popless”; “Cadeira Eléctrica”, executadas com um domínio supremo e que tecnicamente são transportas para um subtexto predominantemente rock; a minha memória era um constante lapso e relapso de imagens e de frases desconexas que me confiscavam os restos da sanidade mental, “você me deixa louco”, por vezes acordava às quatro da manhã e enfrentava o pavor de ficar para tia velha e frustrada como as beatas que rezavam na capela da Zambujeira do Mar por um Deus desconhecido e o ar era tão espesso quanto a areia quente de uma tarde de Verão rodeado por figuras disformes que se desmembravam em cada passo como leprosos que entoavam insistentemente numa ladainha doentia, “você me deixa louco”; e o público tem-se demonstrado deveras receptivo e participativo com a actuação excelente dos GNR que se revelam dramáticos em “Dançar SOS”, pop em “Cais” e “Asas”, palpitantes e urgentes em “Impressões Digitais”, e rock “Sangue Oculto”, esquizofrénicos em “Las Vagas”, as palmas ecoam heterogeneamente num excesso de satisfação; percorria insistentemente um mapa com países inexistentes e golpeava as ilhas perdidas onde se enclausuravam virgens vigiadas por um círculo de castratis que navegavam à deriva num cruzeiro onde os ouviam cantar, “você me deixa louco”, e por vezes encontrava num retrovisor convexo a minha inocência a morrer e não sei se estava no futuro no passado se no presente sujeito às mãos de um “círio cintilante”, ou num xadrez em que a rainha era a última a soçobrar perante as investidas dos cavalos; parecia que a tempestade se estava a impor num coalhar de nuvens cinzentas que se coagulavam no meu rosto como se fossem borbulhas de um eterno adolescente que se representa através do meu corpo; o Jorge Romão discursa para a multidão sobre os técnicos que os acompanham e que são fundamentais para o “espectáculo” e lamenta que Jorge Jacinto (roadie) não esteja presente devido ao falecimento do seu pai durante o dia de ontem em que os GNR tocaram no Douro Rock e este estoicamente não abandonou as suas funções; e os GNR continuam a desfilar o seu acervo de sucessos como a macabra “MACabro”, o hino “Pronúncia do Norte”, a popular-kitsch “Nova Gente”, a dramática “Morte ao Sol”, e a eterna “Dunas”; o público quer de volta os GNR e as salvas de palmas sucedem-se e os músicos surgem para a pop-irónica, “Quando o Telephone Pecca”, à qual se segue a rock-kitsch: “Quero que Tudo vá para o Inferno”; e as luzes do palco denunciam que os GNR irão voltar mas as pessoas afastam-se como se fossem pombos a depenicar migalhas de pão duro que a minha avó lhes ofertava em nome da generosidade; “Sub 16” trá-los ansiosamente de volta e as palmas e o delírio sucedem-se semelhante a uma peste benigna como o amor que em ciclone anula todos os outros sentimentos deixando o escravo do escravo do escravo feliz: “+ Vale Nunca”.
GNR, Tour 2017, 12 de Agosto, Festas da Batalha
Em memória do lendário produtor australiano Tony Cohen e do pai do Jorge Jacinto
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