Na janela embaciada do nosso quarto observo um quadro bucólico do Noronha da Costa onde consta a silhueta de uma mulher com um vestido escuro do século XV que acena um adeus que amargamente retribuo, e enquanto o vidro é salpicado por chuviscos que tingem a sombrinha de lágrimas deito-me numa cama de lençóis intempestivos impregnados de sémen e do perfume a lírios líricos da sua vulva, e tento abstrair-me da melancolia de quando era adolescente e testemunhava os dias de Setembro a se curvarem poeticamente perante a sedução do Outono, fecho os olhos e revivo o seu sono profundo de quem está num labirinto de onde não consegue sair; encontro-me no Salão Brazil onde irão decorrer três concertos: A Jigsaw; Raquel Ralha & Pedro Renato; Victor Torpedo reunidos com o objectivo de angariar fundos para socorrer os gatos urbanos de Coimbra; A Jigsaw apresentam-se sem um dos seus elementos nucleares o João Silva (que se encontrava a musicar a peça “TOMEO Histórias Perversas” levada à cena pela Escola da Noite) e assim restava o João Rui (guitarra acústica/voz) com os convidados: Tracy Vandal (voz); Victor Torpedo (guitarra eléctrica); Pedro Antunes (baixo eléctrico); e é o João Rui e a Tracy Vandal que são os centros narrativos de histórias de amor e sangue emolduradas em universos em que predomina o rock e o western billy, que ganham uma considerável dimensão sónica através da qual é transmitida uma imprevisibilidade excelsa; quando a Tracy Vandal é a protagonista as canções ganham um pendor poético em que a esperança é uma tragédia que ama o pathos; e um fio de lã orienta-a para uma cascata e do céu pende uma corda que trepa e vislumbra um galeão com corsários que vogam por entre as nuvens de algodão doce cor-de-rosa, e secretamente está perturbada por se encontrar ausente da nossa casa com vista para o mar e uma convulsão repercute-se pelo seu organismo como um garrote de dor que é incapaz de contrariar e por instantes sente em si o amor que nutro por ela e o desejo que me corrompe as veias carcomidas pelo tempo, e tem ao seu lado um fantasma e quando trocam de olhares o seu rosto é reflectido nessa personagem e fundem-se e respira fundo e quando abre os olhos a lua é um papagaio manipulado por uma criança esquecida pelos pais num ventre em que predominava a solidão e tenta rasga-lo mas não lograva perpassar o casulo, pensa em gritar mas fraqueja e se ouve o seu choro julga que é de uma outra criança e em vão desespera; a Raquel Ralha (voz) e o Pedro Renato (guitarra eléctrica) fazem-se acompanhar pelo Sérgio Costa (guitarra eléctrica) e por um Mac que introduz a base das canções que correspondem a versões de originais da segunda metade do século XX, às quais é-lhes adicionado um negrume que as torna tão belas quanto tóxicas algo que paradoxalmente as revitaliza enquadrando-as no século XXI, sobrevém a voz da Raquel Ralha que lhes dá uma profundidade impar que conduz o ouvinte por universos estranhos mas que é incapaz de lhes fugir dada a sedução dramática do seu timbre de voz, visceral; e tenta saltar do galeão mas é impedida pela Outra X (1) e são-lhe colocados agrilhoes e movimenta-se como se fosse uma pata choca a arrastar os pés pelo convés em direcção à proa, e lentamente passa a mão pelo seu cabelo preto e as ondas repercutem-se à sua volta e julga que está a ser penteada pela sua mãe de mãos de gigante e sussurra o seu nome na esperança que a salve, porém o horizonte é-lhe imposto num rascunho que descreve em numeração romana os rostos dos seus familiares que em fila indiana mergulham da lua para o além, e o primeiro choro de um recém-nascido é liberto da sua boca em botão de rosa vermelha e desperta as algas e os limos que abandonam o mar e impedem a persecução do galeão, e Outra X (1) julga que embateu contra uma nuvem de chumbo e ordena aos escravos para apontarem os canhões para o inimigo invisível, e ao desencalhar descobre que a prisioneira desapareceu e dá violentamente com a bengala sobre a cabeça de um anão sinistro que desmaia, e corre à volta do navio e desesperada espreita para baixo e vê-a a escorregar por um halo e gradualmente desaparece da sua vista; Victor Torpedo veste o seu fato de astronauta e no ecrã surgem os vídeos das canções pop-lo-fi com a respectiva letra, raramente se fixa no palco preferindo enfrentar e desafiar o público a cantar os refrães absurdos, e ainda compôs uma canção “I Love Cats” que demonstra a paixão do cantor/performer pelos felinos, e instituiu a festa; e uma ínsula sob um lusco-fusco intermitente com palmeiras e um mar de topázio voam gaivotas de papel que grasnam e acordam-na e toca no seu tornozelo onde se encontrava um bilhete em hebraico e desolada olha em seu redor e o ar a fugir-lhe e as margens da ilha cada vez mais pequenas e ela cada vez mais grande e dá um grito que irrompe em trovões e assusta as andorinhas do mar, e o silêncio angustia-a e põe as mãos sobre as orelhas com brincos de madrepérola da avó e agacha-se como um índio à espera de um sinal de fogo e com um lápis desenha na areia um universo em que as estrelas e os planetas se conjugavam em seu redor para a amar.
A Jigsaw + Raquel Ralha & Pedro Renato + Victor Torpedo (a receita angariada reverteu a favor do Fundo de Socorro Animal do Grupo Gatos Urbanos de Coimbra), 22 de Setembro, Salão Brazil, Coimbra.
(1)- Nome de uma canção dos GNR com poema de Rui Reininho e composição de Tóli César Machado incluída em "Retropolitana" (2010).
Em memória do Cícero.
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