segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A Selva

O centro cultural de Oliveira do Bairro é de uma volumetria imponente e a sua arquitectura sobressai sem que se sinta o seu peso sobre a envolvência e o nome é Quartel das Artes Dr. Alípio Sol o apelido “Sol” é por si curioso porque este encontra-se substituído por uma “lua negra quando mata” como Rui Reininho cantará na “O Arranca-Coração” que irá ser tocada pela segunda vez desde que no ano passado fora lançada com a biografia oficial dos GNR “Os GNR—Onde Nem a Beladona Cresce” pois anteontem tocaram-na no Luísa Todi em Setúbal numa sala esgotada onde estrearam “Do Lado B” que começa com “Decapitango” e o cenário é um pano iluminado que reflecte sobre um palco vazio que irá variar durante o concerto para além do Rui Reininho (voz e maracas), Tóli César Machado (teclado e acordeão) e Jorge Romão (baixo eléctrico) estarão Samuel Palitos (bateria) e Paulo Borges (teclados e harmónio) e surgem os músicos e iniciam “Saliva” que tem um meio tempo que contorna os versos e lhes incute um poder inexcedível de tão belo e este tempo perpassa “Reis do Roque”, “Vídeo Maria”, “Bellevue” infectadas com variações melódicas por parte dos teclados do Tóli César Machado e do Paulo Borges responsáveis pela evocação de um psicadelismo sub-reptício que coloniza os sentidos e os deixam sorverem uma felicidade controlada, e a “1991” que devo ter ouvido pela última vez no Estádio de José de Alvalade há 25 anos atrás tem diversos pontos em comum com a versão que consta no álbum “Rock In Rio Douro” mas aprofundam a tonalidade fúnebre que gradualmente se transforma em algo dramático que a coroa com a adjectivação de épica, e o romance vivenciado por dois adolescentes é exposto devidamente em “Asas” em que encontra um vislumbre lampejante da pop, “O Arranca-Coração” com um andamento delicado de lullaby para fazer adormecer crianças que têm medo do escuro e que é hipnotizante, e o psicadelismo pop é da responsabilidade de “Las Vagas”, a surpresa “Mau Pastor” é uma trip comandada pelo acordeão do Tóli César Machado infectada por um psicadelismo rural em que a natureza é moldada pelo poder do sol no mínimo eloquente; a minha avó saiu para o Casino Peninsular onde é recorrente encontra-la numa cave fumarenta onde metia notas de escudos numa máquina em troca da sorte ou do azar algo que entrava em contradição com a austeridade que implementava na sua vivenda com vista para a Praia da Claridade em que tudo era contabilizado como se a sua rotina somente fizesse sentido a controlar o movimento dos seus filhos e netos que não paradoxalmente a perturbavam e a deprimiam e por muitas piruetas que desse era constantemente desconsiderado e se ganhasse ao meu primo no xadrez ela nunca me dava os parabéns antes amuava e desaparecia para junto da criada que cozinhava a esquizofrenia e se me prontificava a passear o pastor alemão ela ficava preocupada com a eventualidade do animal desaparecer e quase sempre tinha vontade de o levar ao mar e instiga-lo a entrar pelas ondas para se afogar mas depois seria incapaz de adormecer com a imagem do seu focinho castanho e preto a uivar por socorro e teria que o ir salvar para evitar o ostracismo da minha avó; “2/3 de Água” e “Tirana” são intervalos pop pois quebram com a narrativa musical carregada de psicadelismo, e já “Pronúncia do Norte”, “Voos Domésticos” e “Sangue Oculto” são células que aparentemente dependem umas das outras quanto a “Sete Naves” é um epílogo tão flamejante quanto poderá ser a felicidade que repara na vida como se esta fosse continuamente apetecível e as últimas “Dançar SOS” e “+ Vale Nunca” jogam por contraste uma é profundamente triste por o narrador se encontrar acompanhado pela solidão a outra impõe que haja uma criança no interior de cada um de nós; e ninguém tinha coragem de a criticar ou de lhe explicar que o seu comportamento não era o de uma avó mas de uma estranha que se fazia passar por avó com a boina ou o chapéu de aba verde com plumas de gansos estéreis e uma écharpe e brincos de vidro porque havia vendido os de prata e os de ouro com rubis para jogar na roleta russa no Casino do Estoril onde gastara a herança do seu pai e que adorava visitar pois delirava com as palmeiras anãs e os palacetes nos quais conviviam os membros da realeza europeia que via nas revistas cor-de-rosa ou na Nova Gente e por vezes comentava com a empregada a elegância destas personagens que ria sem ter a noção exacta do que falava a sua patroa e quando se sentava na poltrona da sala a somar e a subtrair as suas horas de trabalho ficava com um rosto tão perturbado quanto entristecido e depois de muito rabiscar assinava um cheque com menos tempo do que aquele que a pobre trabalhara durante a semana a passar a ferro a lavar as escadas da entrada a limpar a cozinha a arejar os quartos e a lavar a roupa no tanque e a pendurar a roupa a fazer o almoço e o jantar e a coser as colchas de bilros e ao passa-lo para as mãos da Amélia fazia a contabilidade que lhe convinha e a pobre aceitava sem protestar porque não sabia ler ou escrever e os números eram entidades tão abstractas quanto inacessíveis e ao entrar em crise existencial mal saia do seu quarto com a fotografia dela com o meu avó a preto e branco sozinho sobre a parede branca e o roupeiro guardava os vestidos que marcaram a sua vida como o do baptismo e o da comunhão ou do seu casamento e os que envergara para cada uma das vezes que vivenciou a passagem de ano no Pátio das Galinhas no qual dançou com o meu avó como se fosse a última vez e na penumbra lamentava-se por desejar ir ao seu encontro mesmo que este tenha morrido há anos ou contava histórias repetidas em que era sempre a heroína e folheava “O Homem que Olha” do Alberto Moravia e reflectia sobre as potencialidades da observação que inconscientemente havia desenvolvido ao longo da sua vida e outra vez adoecia sem que estivesse verdadeiramente doente e ia à Farmácia Gaspar aconselhar-se e quando chegava a casa fazia um cocktail de comprimidos que lhe anulavam a vontade de beijar o meu avó e adormecia deixando escorrer um fio da saliva pela sua boca de dentes postiços e lábios vermelhos enrugados de tanto apostar na morte e um dia entre tantos outros visitava-a diariamente para lhe fazer companhia na sua casa já não a Amélia e o cão ou a restante família e certificar se jantava a sopa dos pobres e se não se esquecia de seguir a tabela de medicamentos entre os quais uns se destinavam para o seu coração debilitado que lhe tirara forças para sair em direcção do Casino Peninsular e relatava os episódios da sua meninice passada no Rio de Janeiro onde o pai fora proprietário de diversos terrenos e a viagem transatlântica que tanto a maravilhou e a lenta atracagem no Cais das Colunas e antes contemplara o Terreiro do Paço como se fosse uma miragem e o terço de pau santo aplicado sobre a cabeceira da sua cama era da Amazónia onde havia piranhas e cobras de vinte metros que deglutiam vacas com hastes de veados ou bandos de macacos que saltavam de árvore em árvore à procura da fêmea com o cio e sorria inebriada e chorava silenciosamente por causa do seu passado aventuroso que era uma ficção e também sorria com um nó na garganta surpreso por se ter inspirado na “A Selva” do Ferreira de Castro que dormia ao lado do copo com água na mesinha de cabeceira que a obrigava a ir à casa de banho e vagarosamente passeava de camisa de noite pelos longos corredores e beijava a aliança do seu marido ou dava a mão aos pretendentes que o pai lhe consignou e rejeitava-os com um abanar de leque irrequieto e mexia delicadamente na grinalda para a endireitar na sua cabeleira de menina pintada pelo Noronha da Costa e pairava em redor da sala e no quarto gradativamente regressava para a fotografia ao lado do amor da sua vida.

GNR, Do Lado B, 28 de Outubro, Quartel das Artes Dr. Alípio Sol, Oliveira do Bairro.

Dedicado ao Alberto Moravia, Ferreira de Castro e ao Noronha da Costa.