segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As Naus

Encontro-me na Pena freguesia de Coimbra no Centro Cultural e Recreativo da Pena onde irá decorrer a Festa D`Anaia e no cartaz desta noite prontificam-se seis conjuntos: Destes 3, Wipeout Beat, Dalla Marta, The Twist Connection, The Dirty Coal Train, The Sunflowers; o concerto dos Destes 3 decorre num palco (Palco Efervescente) junto a um bar e a sua música remete para diversas bandas de hard rock das décadas de 70/80/90 obviamente do século passado e as canções estão devidamente ensaiadas e com qualidade sónica mas há uma questão que lhes é transversal a sua unidimensionalidade devido à falha de rasgos de originalidade; Wipeout Beat (Palco Efervescente) apresentam o seu compêndio estilístico em que há um domínio dos teclados arcaicos adicionados a uma guitarra eléctrica visceral e a vozes que parecem ilustrativas de almas kitschs, e as novas canções abandonam o lo-fi para um psicadelismo synth que deve ser acompanhado de ácidos com rostos da Minnie e do Pluto; Dalla Marta são responsáveis por abrir o palco principal (Palco d`Anaia) e o nu metal com apontamentos electrónicos preso aos cânones instituídos por bandas americanas do início dos anos 90 com a agravante de cantarem em português algo que é postiço, mas conquistaram o povo; The Twist Connection (Palco d`Anaia) derramam o seu rock and roll que é de tal urgência que os projecta para um patamar de excelência com a vantagem de terem Carlos Mendes na bateria e na voz e que é um frontman que se engrandece em palco como se este fosse o viveiro ideal para habitar eternamente e isto tem ligação com o seguinte: quando há um inesperado corte de energia ele não para de tocar bateria e é acompanhado pelas palmas da multidão e quando reaparece retomam a canção no preciso ponto onde haviam sido interrompidos (impagável!), e se na recta final faz diversas declarações de amor à música e à vida que são de facto sentidas e se alude aos amigos que vieram expressamente para o ver é porque conhece o valor da amizade e quando se atira do palco e aterra de joelhos no meio do público e canta é porque está a personificar uma personagem que é maior do que a vida, a nota é de tal forma positiva que há que qualifica-los como o melhor concerto da Festa D`Anaia como a seguir irei justificar; The Dirty Coal Train (Palco d`Anaia) instituem um garage em que as canções são curtas e agressivas mas que dada a similitude impõem uma única perspectiva para além de alguns desajustes entre o baterista e os outros dois guitarristas que são inadmissíveis, há a destacar a líder de vestido e por cada vez que roda e movimenta as suas pernas com pés em saltos altos pretos ganham uma dimensão de beleza que podem ser qualificadas como as mais sexys do rock and roll por aqui semeado; The Sunflowers (Palco d`Anaia) versam pelo punk rock com tonalidades profundamente sujas e que são de uma eficiência atroz mas não ultrapassam estes pontos e acrescentar-lhes algo sufocante para além de não almejarem comunicar com o público apesar da mosh; alguém havia dito que tudo o que ela via à sua volta existia para lhe engrandecer o ego alimentado por um hábito maldito que a perturbava quase diariamente ou que a sua tatuagem era dedicada ao 666 que manchava um dos ombros algo que paradoxalmente convivia pacificamente com a Cruz de Cristo que bailava no seu decote pronunciado que eu acompanhava com o olhar e media o tamanho dos seus seios e disfarçava o sorriso nervoso que denunciaria tal ousadia e o seu rosto de boneca sevilhana retribuía-me a simpatia e esticava o dedo de aranhiço com unha de gel para o interior do copo com whisky e as pedras tilintavam no vidro fumado e perturbava o silêncio contaminado com rock and roll vertendo observações que lhe pareciam pertinentes e que pontualmente encontravam ressonância na minha cabeça e para disfarçar este distanciamento abanava-a como os cães que os portugueses colocavam no banco traseiro de carroças movidas a gasóleo e ela acreditava que estávamos a ter uma conversa algo que a deixava radiante por encontrar alguém atento à sua divagação filosófica sobre o vestido de noiva que desejava vestir num dia que seria único e irrepetível ou assumia que havia dias em que não conseguia sair da cama e distraia-se a comer pipocas e a ver a Quinta dos Famosos e pegava no telemóvel e votava no seu favorito como se estivesse a faze-lo para as eleições legislativas e remexia os olhos azuis que brilhavam com tanta tecnologia e por vezes fazia um intervalo na esperança que eu tomasse a iniciativa a convida-la a abandonar a mesa do Café Académico em Coimbra porque estava com saudades dos seus primos de Buarcos e do pai que fora tripulante de um Dory e quase ficou sepultado no gelo num entardecer em que caiu subitamente o nevoeiro e da mãe que cozinhava para os restaurantes salgados de carne camarão e delicias do mar de bacalhau e dos irmãos gémeos que eram modelos que se despiam no calendário dos bombeiros voluntários um era o Junho o outro o Julho e perante a minha inacção acendera um cigarro que ardia devagar como se de cada vez que ela o pose-se na boca um novo pensamento surgiria e levá-la-ia a contar o seu percurso académico do qual tanto orgulho sentiram os pais que expunham a sua fotografia numa vitrina com a capa a bengala e a cartola de palhaço na Queima das Fitas de Coimbra sobre a sua cabeleira loura ou abanava o tronco mas os seios não saltitavam e sorria e perscrutava-me através de um olhar de lado e passava discretamente as mãos sobre as pernas tão elegantes quanto depiladas para acomodar as meias de vidro pretas num gesto ostensivamente sensual que perturbava a minha personagem fria e distante de quem estava acompanhado por uma paciente num divã de psiquiatra e ao apagar o cigarro sugeriu que estava numa de seguir para o Bairro Norton de Matos para se encontrar com uns amigos e demos um salto no tempo e estacionamos contíguo a um prédio com uma escada lateral que nos dava acesso a uma porta com um corredor que nos obrigava subir umas escadas sujas e gastas e fomos recebidos por uma família de africanos que nos convidaram para a cozinha que na mesa tinha cristais misturados com Vitamina C e ela enrolara uma nota de cinco euros e snifava-os de uma só vez para bater melhor no seu cérebro de princesa e acreditava que os pescadores sentados nas ameias da muralha de Buarcos a coser as redes estariam a bordar o seu vestido para o dia em que tanto desejava casar na Capela da Nossa Senhora da Conceição com o seu noivo armador de navios de pesca em Aveiro e empunhara-me a nota e coloquei-a na narina direita e inspirei uma nuvem rica em carbono que me transformava numa personagem em que somente conhecia os impulsos mais básicos e a luz apesar de ténue marcava-me o olhar como se fosse uma chama tão próxima quanto distante e ela comprou uma grama de cocaína e deu-me a mão e fizemos o percurso inverso mas que me parecia disfuncionalmente geométrico e o carro arrancara e o seu rádio é tecno próprio dos carrinhos de tuning e as ruas molhadas pareciam que espelhavam ouro da Gold Strike e no vidro as escovas diluíram a chuva miudinha num rasto de cauda de cometa perdido no espaço e os semáforos piscavam rapidamente e ao rolarmos sobre a estrada do campo pus-lhe a mão sobre a teia de vidro e apertei-a e ela sorriu mas não retirava o olhar da estrada estreita e larga iluminada por dois focos perpassados por sémen que nos encaminhavam para um labirinto barroco em que o tempo era tão excessivo quanto sufocante que me queria sacrificar à vida e por instantes abandonei o meu corpo e regressei à porta da minha casa na Figueira da Foz e na garagem ela estacionara o carro e ao entrarmos na sala minimalista as luzes surgiram num repente que quase me desequilibraram e habilmente liguei o aquecimento central e os Kraftwerk irromperam das colunas de válvulas e sentia cada beat como se fosse o do meu coração intoxicado e se fosse uma estátua ficaria eternamente sentado no sofá preto a vê-la dançar como uma bailarina numa caixa de espelhos que despia as alças do vestido vermelho e se aproximava sorrindo e eu corria o fecho e ela afastava-se a abana-lo como se fosse o pêndulo de um relógio de pé antigo versado em sensualidade e somente com a lingerie preta decretara que viesse na minha direcção e saltou lentamente como se fosse uma aranha da Louise Bourgeois e a sua língua entrava-me pela boca e a sua saliva era uma mistura indefinida de fármacos com tabaco e whisky e que se enrolava livremente pela minha orelha e um fio quente eléctrico percorria a minha coluna que acendia o meu libido que ela apalpou e retirava-o das calças e depois despiu as suas cuecas e susteve-o nos lábios vaginais e devagar penetrei-os e estalaram as molas do sutiã e os seus seios e a Cruz de Cristo saltitavam indefinidamente na minha boca num ritmo seu meu…; no segundo dia é a vez dos Salvador D`Alice; Eduardo Martins; Senhor Doutor; Mighty Sands; Samuel Uria; Flying Cages; Les Lullies; Salvador D`Alice (Palco d`Anaia) apresentam um compêndio de quatro canções com estruturas diversas que são anuladas e ou acrescentadas do jazz, rock, rock progressivo, blues, o problema que as enfermam negativamente é a inexistência de uma narrativa sonora em que haja uma base que faça a ponte para cada um destes géneros por vezes feridos por dinâmicas desajustadas; Eduardo Martins (Palco Efervescente) apresenta-se com uma guitarra acústica ligada a pedais que lhe dão um psicadelismo ténue e que se destacam daquelas que partem exclusivamente da guitarra e do dedilhar que remete para um academismo com origem em autores da música clássica mas que infelizmente não é devidamente aprofundada; Senhor Doutor (Palco d`Anaia) é um jovem consciente da sua persona que canta sobre a rotina dos sentimentos amorosos própria para uma novela que nunca irá para o ar, porque há uma fragilidade na pop com pretensão de ser kitsch para além de não conseguir transmitir emoções através da sua voz que esteve inúmeras vezes desafinada mas que paradoxalmente cativou o público e ainda há uma outra agravante é a pobreza estilística das suas letras que são de um vazio arrepiante e como exemplo posso dar o seguinte: “Havia de mudar a sopa amanhã”, e nem a participação especial do Samuel Uria o retirou do atol da mediocridade; Mighty Sands (Palco d`Anaia) são emissários do universo californiano da década de sessenta e que é apresentado com uma delicadeza que os infecta de uma beleza vintage que cria quadros em que há palmeiras que ladeiam ruas com mansões e ou vivendas de subúrbio onde viveu na adolescência o Phil Spector que tinha o dom da melodia e que se cruzou com os Doors e outras tantas bandas que hoje são icónicas, ideal para serem ouvidos numa ilha onde domina exclusivamente o pôr-do-sol à frente do qual o namorado beija a namorada como o fazem dois dos músicos duas vezes; Samuel Uria (Palco d`Anaia) faz-se acompanhar por um partner ligado a um teclado e a música pop está devidamente articulada com as letras que são consideravelmente melhores do que as do seu amigo Senhor Doutor, e as mais compridas são substancialmente melhores do que as curtas nas quais o tondelense não consegue encaixar a voz no beat mas já quando a guitarra eléctrica encontra a percussão a qualidade da sua prestação sobe, porém tudo se desmorona quando pede palmas e estas eclodem e de seguida censura-as: “É pá vocês batem palmas a tudo!” e a constante e irritante vénia entre o Samuel Uria e o Miguel Ferreira no intervalo das canções é ridícula e boçal, e após terem ensaiado um combate de boxe receberam uma ovação que os coroou com um falso triunfalismo; Flying Cages (Palco d`Anaia) na substância configuram uma banda indie pop com melodias muito bem desenhadas e de teor sónico apreciável para além de estarem sintonizados com agrupamentos similares do estrangeiro e é esta relação que os prende a uma tipologia que se limita a ser um espelho mas o que lhes é exigível é que o recriem e lhe ofereçam sangue novo, o público delirou; Les Lullies (Palco d`Anaia) convocam o garage nova-iorquino que tem estruturas rítmicas cruas e as vozes são anúncios publicitários para conduzir os dementes a consumir a demência dos outros e esta turbulência repercute-se nos presentes fora de si.

Festa D`Anaia, 21 e 22 de Outubro, Centro Cultural e Recreativo da Pena, Pena.