Acendo mais um cigarro e em vão tento ler uns rabiscos indecifráveis e socorro-me de um rascunho de uma peça de teatro: “Ao reflectir sobre as lápides cultivadas aleatoriamente num jardim de almas num comício de surdos-mudos, revejo-a a desfilar num carro de vidros fumados; e a ser carregada pelos amigos e familiares que em passo lento encaminhavam a minha mãe por entre ciprestes viçosos, e a deitavam ao lado de uma cova húmida para onde os coveiros a desciam suportada por cordas; e a terra ecoava sobre o caixão na esperança remota que acordasse do seu sono profundo…”, atiro a peça no tampo da minha secretária negra e tento produzir uma raiva suprema que incorporo e segrego lágrimas que não consigo fazer correr pelo meu rosto e pouco a pouco como se estivesse no funeral da minha mãe elas vogam sulcando-o de um brilho de dor transparente; a sala do Teatrão encontra-se vazia à espera dos fãs de TAV Falco que nasceu nos Estados Unidos há muitas décadas atrás e que se faz acompanhar por um quarteto de músicos que se denominam de Panther Burns e se dividem entre a guitarra eléctrica, baixo eléctrico, bateria e teclado, vestem fatos escuros e há dois que usam óculos escuros, e introduzem um instrumental que é como uma passadeira vermelha à entrada em cena do TAV Falco (guitarra eléctrica/voz) que é de uma elegância extrema e que é recebido com entusiasmo pelos presentes; e as canções variam entre o rock pejado com calor californiano derivado às guitarras com as que remetem especificamente para o fim da década de sessenta do século XX; a pose de TAV Falco é a de um crooner exasperantemente sóbrio quanto profissional pois nos intervalos criticava o estado dos seus monitores que o incomodavam; e ainda discorrem pelo blues e pela pop mas sem caírem em clichés antes revelam um universo alternativo que se poderá entender de vanguarda para além de estar associada a uma marginalidade que lhes conferem uma decadência dandy; TAV Falco ora canta ou fala de verso em verso não se percebendo por vezes o que dita esta alternância algo que revela estranheza outras misticismo como se o que narra fosse ditado num código que transpõe universos em que não domina o idílico; e por vezes os diversos géneros musicais acima assinalados são polvilhados com pó kitsch e assim eliminam qualquer eventualidade de se transformarem numa caricatura do passado; apago o cigarro e acendo um outro e fumo-o e improviso um galã numa telenovela da América latina ao qual acrescento um tom poético ao telefone que não agrada às antenas de televisão, (“sim?”), “Conchita ´OIGA` you do the smack” (1), e sem que a minha contracena responda acrescento: “Let's say at half past seven I want you back” (1), e tento acrescentar sedutoramente, ”All right?” (1), e sorrio tristemente perante a submissão da minha mulher que me venera e que obedientemente me retribuía o seu amor de cores outonais; olho para o retrato do meu pai que tinha por hábito levar-me a um estúdio para as fotos para a caderneta escolar, e sugeria ao fotógrafo que eu era um excelente modelo que contrariado aceitava a sugestão, e colocava-me à frente de um telão onde duas velhas vestidas de folhos brancos bebericavam chá num jardim com ilustres begónias e sapinhos das Caldas embrulhados numa renda de filigrana a saltitarem na relva como se fossem mais leves que o ar, numa geladaria pedia um gelado a uma senhora gorda de bata branca e touca na cabeleira que sorria enquanto passava a língua pelo chocolate e pela baunilha (e agradecia à minha mãe a felicidade que me estava a proporcionar), e fecho os olhos e coloco as mãos juntas sobre o peito e sou um anjo que está a efectuar o milagre da multiplicação dos pães e a Sua mão abençoa-me por ser tão misericordioso para com a miséria humana, e estou de fato de banho deitado num leito de mar acompanhado por uma sereia de cabeleira loura postiça em bikini cor-de-rosa que transmite uma estação de rádio com música ligeira que besunto com bronzeador para mudar a emissão, e sentado num cadeirão junto a uma lareira de tijolos de burro castanho ladeado por uma árvore de luzes que piscavam o Natal esperava que o meu pai a desce-se e me oferece-se a bola de cristal que tanto desejava pontapear num campo de futebol na Praia da Claridade, a minha avó batia palmas entusiastas perante o seu conjunto de lençóis na cama de pregos para enfrentar o Inverno que era a sua prisão; o concerto está a decorrer com segurança algo que incute confiança ao TAV Falco que gradualmente se familiariza com a multidão disposta à bajulação; e ainda apresenta uma canção de dois minutos com as guitarras num rock visceral; e durante uma outra TAV Falco meneia a pélvis timidamente como se estivesse a homenagear o Elvis Presley; e deste parece que executam uma canção de trás para à frente que é de facto genial; e o kitsch surge numa outra e remete para os bares de prostitutas de Tijuana amadas pelo Jack Kerouac no “On the Road” mas que não é redundante (antes pelo contrário); e o rock and billy é disposto segundo o seu cânone mas manchado de um negrume que a torna épica; TAV Falco apresenta os Panther Burns e questiona se estamos familiarizados com o “Missipi River” e as duas canções que se seguem são trips com mezcal e cocaína numa bandeja casquinha num cenário com vista para uma estrada que se alonga ou diminui conforme o nível de intoxicação, memoráveis; e quase a encerrar o concerto que está no limiar das duas horas de êxtase e de supremacia estética, TAV Falco abandona a guitarra eléctrica e somente com o microfone entre as mãos canta como se fosse um cantor de blues num exercício inebriante de tão sedutor; as palmas que estão a ecoar apesar da violência serão sempre escassas para homenagear TAV Falco; e personifico um poeta que está num pontão sentado num sofá a ler “Sífilis Versus Bílitis” (2), e que tentava poema após poema esquecer os dias de sol que divagaram por entre nuvens incertas e para mitigar a solidão beijo um careto com dentes lavados de fresco, (“sim?”), “All right?”(1), o vento contorna os nossos escafandros para enfrentar um calendário que teima em prosseguir por entre destroços de um aquário com serpentes e virgens num somatório de coincidências improváveis, e num espelho encontro o meu rosto difuso para dizer-lhe que “eu” não sou uma personagem mas uma miríade iconoclasta que se revela ao olhar dos que tentam identifica-la como se “eu” fosse eu.
TAV Falco and Panther Burns, 6 de Outubro, Teatrão, Coimbra.
Dedicado ao meu guru Rui Reininho.
(1)- "Hardcore (1º Escalão)" (Rui Reininho, Miguel Megre, Vítor Rua) incluída no álbum dos GNR “Independança” (1981).
(2)- REININHO, Rui, Sífilis Versus Bílitis, Lisboa, Quasi Edições, 2006.
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