terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Hamlet

Um anjo urina água benta para o interior de uma concha de pedra rodeada por uma vegetação luxuriante onde estou proibido de consumir os frutos das árvores que simbolizam o bem e o mal caso contrário o Mestre expulsar-me-á do Jardim do Éden mas como sou vegetariano elas são-me uma tentação assim como para os macacos que as podem comer porque são seres irracionais mas se fossem humanos seriam inimputáveis e tento obter uma perspectiva sobre a minha condição de discípulo que se surpreende com o nascer do sol e com o chilrear poético dos passarinhos e o esvoaçar de joaninhas que são tão belas quanto delicadamente kitschs e as borboletas de asas salpicadas de vermelho alimentam-se do pólen de um girassol e empurro sorrateiramente uma porta falsa no tronco de uma árvore; o Salão Brazil apresenta os Parkinsons e os Moon Preachers que são um dueto composto por Rafael Santos (voz/Guitarra eléctrica) e João Paulo Ferreira (bateria) e as suas canções têm uma matriz predominantemente rock pautadas por inúmeras dinâmicas que se subdividem em outras que têm o propósito de se compor e decompor e resultam num psicadelismo tão violento quanto intrusivo e que é perturbador por arrebatar a consciência mas o único senão é que aumentam de tal forma a frequência da guitarra eléctrica (quando algumas das canções se aproximam do epílogo) que anula o psicadelismo redundando em algo excessivo que funciona como um anti-climax porém a nota não deixa de ser a da excelência; e dou um passo e desço umas escadas em caracol que parecem intermináveis e acedo a uma sala com uma árvore de Natal a piscar com prendas nos seus pés de metal e o silêncio denuncia que estou sozinho e espreito por uma janela e há um lusco-fusco que não consigo identificar se pertence ao raiar de um dia se é que está a cair a noite e acendem-se velas que parecem estrelas ou mais parecem pirilampos que cirandam como se fossem anjos e persigo um corredor que tem um espelho no qual se reflecte o meu corpo vestido de negro a tentar avançar no espaço sem que tal verdadeiramente ocorra e surge uma multidão que parece intransponível que contorno lentamente e os seus rostos têm os olhos fechados como se estivessem a meditar sobre o futuro que está a chegar e sob os meus pés crescem focos de luz que me transformam num ser com uma sombra gigantesca que em cada passo se transcende num poder incomensurável e quando se apagam são substituídas por raios de sol que me lampejam de uma excentricidade luminosa que extravaso num clímax; os Parkinsons enfrentam a sala lotada e é Pedro Chau (baixo eléctrico) que discursa: “É uma data muito especial principalmente por causa de uma pessoa que nós amamos e que já não está connosco que é o Bruno [Bruno Simões (conimbricense) que fundou os Tu Metes Nojo assim como os Sean Riley & The Slowriders e que desapareceu em Lisboa o ano passado]” eclodem as palmas “amor amor amo e vamos dar um concerto dedicado a ele” e há um impasse e ouvem-se uns acordes da guitarra eléctrica do Victor Torpedo que ordena “o pessoal dos Ossos [denominação de um grupo de amigos e familiares que se reúnem num jantar para celebrar o Natal e do qual fazia parte o Bruno Simões] tem que subir ao palco para tirar uma fotografia” sobem diversas pessoas duas das quais com uma tarja branca com uma inscrição pirata e é com eles no palco que iniciam “Primitive” e que está cada vez mais lotado de figuras saltitantes em êxtase a cantar o refrão “oh baby is a long way to nowhere” e a seguinte “Angel In The Dark” é de uma selvajaria punk que é um dos elementos centrais da movimentação em palco do Alzheimer (voz) e do Victor Torpedo secundados na bateria pelo incansável Ricardo Brito e há “Streets Of London” durante a qual Alzheimer é a representação de uma pureza demente e “Nothing To Lose” é punk mas pejado de acordes kitschs provenientes do órgão do João “Jorri” Silva que gradualmente incorre num psicadelismo perturbador “where can my baby be?” e a “Gril From Another World” é de um canibalismo punk alucinante e é a vez do Victor Torpedo dedicar “Back To Life” ao “Bruno [Simões] e ao Zé Pedro [membro fundador dos Xutos & Pontapés que recentemente faleceu]” e o punk é contaminado pelo órgão do João “Jorri” Silva elevando-o à condição do psicadelismo que inspira uma satisfação sensorial e o poder sónico dos Parkinsons é de tal ordem indomável em “So Lonely” que as pessoas em frente do palco parece que entram num estado hipnótico que as faz vivenciar um espaço em que domina a catarse que se repercute na multidão e a anarquia instala-se e gradualmente se esvai e é Pedro Chau que encerra o concerto com uma nota distorcida e repetitiva como se estivesse a comunicar com o Bruno Simões; e observo um auto-retrato em que o meu rosto se encontra distorcido como se estivesse a vivenciar a mais dura das agonias sobre um fundo laranja que faz sobressair a minha amargura e sossego o meu coração dizendo-lhe que aquele não sou “eu” aquele é “outro” e obtenho a resposta com um desacelerar do seu ritmo e respiro fundo como se tivesse sobrevivido a uma catástrofe e num quarto num maple encontra-se sentado um homem de cabelo grisalho de pijama velho e sujo que fuma um cigarro e sussurro-lhe ao ouvido algo para o fazer abandonar a letargia mas ele somente sorri e ergue os ombros demitindo-se da responsabilidade por estar sozinho mas mesmo assim se pudesse seria seu filho somente para o fazer feliz numa noite de Natal como a de hoje e ausento-me para um outro compartimento de paredes de vidro com luzes estáticas que se multiplicam infinitamente onde me projecto e me divido num universo paralelo.

The Parkinsons + Moon Preachers, 24 de Dezembro, Salão Brazil, Coimbra.

P.S- A ceia de Natal decorreu no ODD ao som dos Vaginas Convulsivas que com o poeta Gigas agraciaram os presentes.
P.S- Feliz Natal.