terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Landscape into Art

Desloca-se lentamente para a janela e corre as cortinas amarelas e recosta-se e observa a paisagem campestre com pegas rabudas sobre galhos de árvores que estão a arrebentar as folhas e que conversam sobre o estado do tempo e lamentam que a terra esteja seca algo que lhes dificulta a procura de insectos e ela senta-se na cadeira de palhinha e acende um cigarro e o fumo sai da sua boca de lábios pintados de preto em círculos que se desarticulam com a brisa quente que emana do exterior e abstrai-se do quadro e tenta recuar no tempo quando ainda era adolescente e brincava comigo às escondidas e segredava-lhe que a amava mas ela ria num riso nervoso de quem tinha vergonha de me rejeitar e eu ficava preso a uma dor que me aprisionava e impedia-me de encontrar no seu abraço a vontade de me dar a sua mão que eu segurava e apertava como se lhe estivesse a pedir que ela me aceita-se nem que fosse por um segundo que para mim seria eterno mas largava-a e algo comprimia-se na minha garganta e os nervos secavam-me a boca e sentia uma miséria agravada quando se despedia com um sorriso de quem lhe agradava a minha amizade e nada mais e eu deslocava-me por entre ruas que pareciam descambar sobre mim e encostava-me a um marco do correio a desejar receber uma carta sua a desmentir o que escrevi e eu corresponder-lhe-ia com uma letra desenhada com os contornos de um inexcedível amor; na Casa das Caldeiras está a decorrer a festa de aniversário da cantora Ruby Ann que toma conta do microfone e apresenta os seus convidados “directamente da Alemanha os Marc & The Wild Ones” que correspondem a quatro músicos Marc Valentine (voz/Guitarra acústica-ritmo), Rene Rottmann (guitarra eléctrica-solo), Stefan Dürrbeck (bateria), Andy Hümmer (contra-baixo) mas este último não se encontra em palco pois segundo Marc Valentine “the original can`t make it” e em sua substituição está um português chamado Nuno Alexandre (um dos mais conceituados contrabaixistas dentro do circuito rockabilly e também jazz da Europa), e as canções têm uma estrutura em que a guitarra eléctrica do Rene Rottman secundariza a acústica do Marc Valentine e somente estes elementos conferem-lhes um estilo rockabilly adicionados a uma secção rítmica em que não se nota a falta do Andy Hümmer e a conclusão unívoca é que são de facto geniais na forma como transcrevem um imaginário rural americano mas em simultâneo o advento da tecnologia com a invenção da guitarra eléctrica e há um cânone que exploram de forma brilhante que é o do Elvis Presley seja na entoação aveludada com que canta Marc Valentine seja na indumentária que fez furor da década de cinquenta nos Estado Unidos da América do século XX e é esta elegância que os torna tão imprescindíveis porque prestam homenagem a um legado em que primava a rebeldia e em que os jovens estavam a descobrir o que era ser jovem numa sociedade segregada em que o sonho americano se cumpria para muitas famílias emigradas da Europa e o Marc Valentine declara “happy birthday Sue” e quando tem oportunidade dedica “I Love My Baby” original do Hayden Thompson “to Ruby Ann”, “I wish the best for my girlfriend” e que exacerba a vertente hillbilly do original que convida à dança “my friends all kown I don`t want nobody else”; e ela continua sentada imóvel e a paisagem tem umas nuvens suspensas que lhe parecem animais diversos que recordam os tempos que com a sua irmã discutiam o que pareciam cada uma delas e ignoravam o chamamento da mãe para irem lanchar e aproximo-me e acaricio-lhe o cabelo escuro como se estivesse secretamente a suavizar os seus pensamentos e ela sem tirar o olhar das nuvens aperta a minha perna magra e percorre-me uma felicidade incontrolável e beijo-a como se fossemos os jovens que se encontravam no recreio da escola mas descobria-a num banco sentada ao colo de um colega e eu fazia de conta que não existia e passava lentamente à sua frente e desaparecia para o interior do edifício e acedia à casa de banho onde vomitava o almoço da cantina e descarregava o autoclismo mas ainda boiavam alguns restos deglutidos pelo meu estômago e voltava a descarrega-lo para me ver livre das provas da minha fraqueza; e é a Ruby Ann que acede a cantar e com ela sobem ao palco um guitarrista e um baterista que se juntam ao Nuno Alexandre executam três canções a primeira é country billy e as restantes rockabilly com a sua voz a enunciar um timbre agudo que poderia ser de uma nativa da América com a paixão pela cultura dos Cadillacs cromados e pelos rodeos e pela paisagem agreste do deserto; e ao chegar a casa fechava-me no quarto onde deveria estudar matemática e as contas saiam todas erradas e eu desesperava e temia que iria ter negativa ao teste do dia seguinte e por vezes a música vinda do seu quarto vizinho levava-me a crer que o slow era o sinal de que estava a pensar em mim mas esta suposição era um mero escape à minha frustração e batia na parede para tentar obter uma resposta mas ela julgava que a música estava alta e desligava-a e o silêncio magoava-me tão profundamente que fazia bater o meu coração desordenadamente mas agora contrai-se tão harmoniosamente que parece que o que vivenciamos foi somente uma ficção escrita por mim e ela levanta-se e deita-se na cama como se fosse uma chaise lounge e olha para mim e eu olho para ela e encontro a adolescente que tanto amei e que me faz avançar em sua direcção… E quando regressa Marc Valentine com os seus dois comparsas aprofundam a vertente rockabilly em constantes e urgentes dinâmicas que emanciparam uma geração de americanos.

Marc & The Wild Ones (aniversário da Ruby Ann), 16 de Dezembro, Casa das Caldeiras, Coimbra.