domingo, 10 de dezembro de 2017

Manifest der Kommunistischen Partei


Noite de chuva em Coimbra onde irá decorrer no Teatro Académico Gil Vicente o concerto “Sempre Além—Um Espectáculo em Torno de António Variações” e o texto da folha de sala é da responsabilidade da comissão organizadora do colóquio: “Variações sobre António. Um colóquio em torno de António Variações” promovido pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e que explica o seguinte: “Sempre além de quaisquer fronteiras ou classificações, este espectáculo performativo e multimédia pretende convocar um itinerário em torno do percurso pessoal e artístico de António Variações e do seu tempo através dos seus temas mais emblemáticos e dos momentos-chave da sua carreira, num registo que mais do que homenagear ou prestar tributo, revisita, relê e celebra a sua obra singular” e os músicos que compõe esta celebração são inúmeros: Raquel Ralha (voz/teclado), Tracy Vandal (voz), João “Jorri” Silva (teclados), Pedro Chau (baixo eléctrico), Carlos Mendes (bateria), Miguel Padilha (teclados), Pedro Renato (teclados e guitarra acústica), Sérgio Costa (teclados e guitarra/ baixo eléctrico), Sérgio Nascimento (bateria), e ainda o irmão do malogrado cantor o Luíz Ribeiro (voz) e o seu irmão Jaime Ribeiro (voz) e a música que dá o sinal para a entrada de alguns dos músicos acima assinalados é “Toma o Comprimido” e o microfone é tomado pela Raquel Ralha que oferece uma profundidade estilística à “Erva Daninha” e “Estou Além” que citam os acordes das canções mas com arranjos actualizados que sublinham a vertente kitsch dos originais escusado será escrever que a Raquel Ralha tem uma voz tão bela quanto segura com um alcance que não faz ter saudade da do António Variações; sobe ao palco Luíz Ribeiro que elogia este: “Maravilhoso colóquio e concerto em volta do António Variações” e o tema que irá cantar chama-se “Curva Ilusória” que foi escrito “a partir de uma cantoria do António Variações” e que tem como fundo um piano melancólico com um verso assim: “No jardim da minha infância” e outro assim “não quero viver da saudade” com uma entoação minhota e se fecharem os olhos como eu o estou a fazer julgariam que o emissor seria o excêntrico António Variações mas se os abrirem como eu o estou a fazer veriam que o Luíz Ribeiro veste camisa branca e calça de flanela cinzenta portanto a antítese do seu irmão que também foi um pioneiro stylish cabeleireiro e a canção seguinte “Lodo” é antecedida por este testemunho “avançamos oito anos” quando o António Variações “nos anos setenta regressou da Guerra do Ultramar” e nessa altura “trabalhava num cabeleireiro na Parede” e foi surpreendido pelo irmão que o informou que “já tenho música para um dos teus refrões (dixit)” e os teclados inferem um dedilhar melancólico sobre o qual ouvimos a alma do António Variações “só perseguido pelo azar” e há um outro verso que causa espanto dada a sua beleza “águas paradas no rio em tempo de maré cheia” pois é arrepiante; surge o Ricardo Seiça que desempenha o papel de um actor com a personagem errada que diz “o António Variações é o barbeiro das palavras” que não passa de uma banalidade errónea porque o facto de ter sido cabeleireiro (e não barbeiro) não é algo que o tenha influenciado a recortar o português antes deu a termos populares um acréscimo poético e nessa medida consagrou-os à cultura pop e prossegue a tentar descrever displicentemente o génio do cantor minhoto; o Ricardo Seiça irá aparecer mais vezes mas não tirei qualquer apontamento porque as suas intervenções serão gratuitas e inócuas; surge novamente a Raquel Ralha que oferece à canção “É p'ra Amanhã....” uma entoação tão popular quanto o original e a música ressalva a sua memória kitsch; à escocesa Tracy Vandal calhou em sorte “Canção de Engate” e que é cantada em inglês e durante a qual há um divórcio entre esta e os músicos que transmitem a alegria de um engate numa rua do Bairro Alto mas devesse sublinhar que gradualmente que a cantora consegue enquadrar-se no ritmo acabando-a primordialmente; o Luíz Ribeiro toma a palavra e o que diz é emocionante “saudade de não estarmos com o António” que faleceu em 1984 vítima (ao que se julga) de SIDA que grassava entre “Braga e Nova Iorque” e que vitimou especialmente a comunidade homossexual e a canção que irá cantar é “um poema com uma viagem simbólica” e que se intitula “Então foi a Braga” e que tem uma melodia tristonha que retrata um périplo de comboio e a voz é similar à do António Variações como se estivesse novamente tão presente como quando ainda estava vivo; junta-se ao Luíz Ribeiro que introduz a próxima canção a partir de um mito “há quem julgue que o António Variações tinha só uma Diva que era a Amália mas não é verdade antes era a nossa mãezinha Deolinda de Jesus” o seu irmão Jaime Ribeiro que agradece à Universidade de Coimbra a homenagem mas acrescenta algo que não deveria sequer pensar “a vetusta Universidade de Coimbra” porque está a ofender quem está a enaltecer a obra do António Variações e o dueto “Deolinda de Jesus” desencontra-se continuamente porque um é lento e incisivo o segundo é meramente popularucho para além de estarem desenquadrados da melodia melancólica (em playback); e Raquel Ralha é voz de “Perdi a Memória” revista num funk kitsch que é arrebatadora já “Dar e Receber” versa o disco sound que faria corar os Abba por ser tão ou mais kitsch quanto as suas canções e a última “Sempre Ausente” é fúnebre e introspectiva como se estivesse a presenciar a viagem do António Variações para o além, e a plateia ergue-se dos cadeirões e ovaciona os músicos faltando os irmãos do homenageado; a carrinha da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian parava à porta de um prédio de quatro andares com elevador no qual descia para ver as novidades e requisitar um livro para me acompanhar durante as semanas de Verão passados num bairro marginal de Aveiro que o lia num quarto com uma mesa redonda com uma toalha vermelha enquanto a minha mãe passava a ferro as camisas do meu pai e cantarolava canções da sua infância passada em Caracas “ai que abandonaste la negra, no la escuchas a chorar?” que me obrigavam a parar a leitura de “Os Filhos da Droga” da Christiane F. que página após página me induzia a rejeitar um universo em que dominava a heroína e esta era tão estranha quanto nojenta mas que paradoxalmente me atraia por consumir a consciência da Christiane F. assim como o seu corpo esquelético que vendia para financiar o vício pelas ruas da Berlim ocidental que ainda se encontrava dividida pelo Muro que por vezes era emitido na nossa televisão a preto e branco e à sua frente num palanque o John F. Kennedy discursava para a multidão no inicio da década de sessenta "Ich bin ein Berliner” e a minha mãe relatava como decorreu o seu assassínio em Dallas pela mão de Oswald e não acreditava que tivesse sido este o autor mas “la CIA o el FBI” mas havia um outro grupo suspeito “la derecha cubana” e “la Jaqueline casó con Onasis para huir de esos criminales” e suspirava triste por o Johnson ter dado continuidade à guerra do Vietnam para engrandecer “el pueblo americano que transformó una generación de hombres sin piernas o de silla de ruedas” que apoiou “a Pinochet” que “que arrojaba a personas vivas al mar dejando a sus madres solas” e dava-me a ler o “Manifesto Comunista” do Karl Marx e do Friedrich Engels que havia comprado na livraria Havaneza na Figueira da Foz no fim de semana anterior para reler os fundamentos do comunismo mas que eu não conseguia passar das primeiras páginas porque a sua nomenclatura lexical era-me inacessível algo que a desagradava e eu sentia-me profundamente ignorante e substituía-o pelo “Asterix e os Normandos” e desejava um dia ter uma porção mágica não para agredir as pessoas mas para as fazer felizes mas a minha mãe achava que tal seria impossível “los portugueses están siempre tristes porque tienen miedo del pasado viven con miedo del pasado cuando Salazar mandaba a los PIDE a arrestar a los comunistas” e que se encontrava sintetizado em três palavras “Fátima, Fútbol e Fado” e parece que se questionava o porque de ter casado com um português “el amor es ciego Jimmy un día lo sabrás” e eu sorria como que a ansiar pelo dia em que me apaixonasse pela primeira vez e procurava na estante algo sobre o amor de preferência um guia mas somente encontrava o “El Amor en los Tiempos del Cólera” do Gabriel García Márquez no qual sucessivamente me perdia mas não desistia de ler mesmo percebendo vagamente a sua história e para colmatar esta incapacidade questionava-a sobre o seu conteúdo mas ela recusava educadamente ajudar-me “tienes que descubrir las herramientas para orientarte en sus palabras” e ao fim de uma página que me levava meia hora abandonava-o para acabar o “Astérix e os Normandos” e depois de jantar na mesa da sala juntamente com a minha mãe e o meu irmão esperava-mos horas para ver o “Monstro da Lagoa Negra” e colocava-mos os óculos 3D mas por muito que tentássemos nunca lograva-mos ver em profundidade e aguentava-mos até que o sono nos levasse a paciência enquanto o monstro procurava uma donzela num pantanal cinzento como se o amor fosse algo de tão poderoso que fosse responsável pela união de uma besta com uma jovem.

Sempre Além—Um Espectáculo em Torno de António Variações, 08 de Dezembro, Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.