terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O Fósforo na Palha

No jornal de hoje há um anúncio curioso “homem com andropausa procura jovem que saiba ler e escrever e passar a ferro e cozinhar e lavar a roupa e tomar conta da minha mãezinha entrevadinha e que goste de música clássica e de ópera e que fale durante horas porque eu sou introvertido e assim o tempo passa mais depressa e que goste de gatos e de cães rafeiros como os meus dois filhos” e ao reler pergunto onde é que este idiota reside mas somente se encontra à disposição um número de um telemóvel ao lado do qual se encontra entre parêntesis “(não atendo números codificados)” e como tal a minha vontade de lhe telefonar com timbre de menina de alcofa fica frustrada mas mesmo assim ligo e oiço uma voz adormecida que deve ter uma cabeleira postiça branca “sim?” e parece irritado por ter sido apanhado em algo que havia previsto e emito uma voz cavernosa de velha habituada a fornos de lenha e a fazer a cama às vacas que as passeia para a ordenha durante a manhã e com as quais contorna a capela em ruínas vítimas de um incêndio demoníaco e oiço o “cavalheiro” a resmungar como se estivesse sem a placa dos dentes que devem encontrar-se submersas num copo de água na mesinha de cabeceira para que ao acordar não veja no espelho o rosto da morte; encontro-me no Hard Club em Gaia e tocam os argentinos Mueran Humanos que apresentam canções synth já que a pop fica diluída numa contínua torrente de beats nos quais é-me impossível detectar uma estrutura que as consigne a esse género (ou se calhar é essa a intenção do casal ela no teclado/voz e ele no baixo eléctrico) mas mesmo que tal seja intencional não resulta porque para além de ser entediante é irritante tanta falta de sentido estético; e o seu perfil de quem gosta de música erudita parece-me falso já a mãezinha fica bem com os pés à lareira quanto aos afazeres domésticos da “jovem” devesse acrescentar que seja activa na cama já que a passividade deve-o ter acometido durante toda a vida e esqueci de acrescentar ao seu anúncio que a “jovem deve ter entre os 35 e os 45 anos” não sei porque descarta a possibilidade de seleccionar uma com 25 anos talvez porque tenha medo de que alguém lha roube e se tivesse a morada enviar-lhe-ia um space cake para o seu casamento com os noivos no cimo de uma pirâmide de chantilly de mãos dadas a sorrir por sentirem uma felicidade esquisita e o anunciante desliga o telemóvel não se antes insultar a idosa “pró caralho!” e ainda tento oferecer-me como se fosse uma prenda a sair de surpresa do space cacke mas apenas oiço um som digital repetitivo; os cabeças de cartaz são The Horrors que correspondem a um quinteto de rapazes liderados por uma figura magra e esguia com uma cabeleira que lhe cobre parcialmente a cara e que dá pelo nome de Faris Badwan e desde a primeira canção “Hologram” é fácil denotar que se encontra no palco um cantor com um poder magnético que dificilmente se faz ouvir por entre o psicadelismo synth pop algo que o técnico da frente irá gradualmente resolver e que é um sinal predominante perturbante com uma cadencia mecânica distorcida “are we hologram? Are we visions?” a segunda “Machine” é um festim de referências com origem na louca Manchester com as suas raves regadas a ecstasy marcada por um ritmo gótico que assombra dada a sua beleza negra e no fim Faris Badwan dirige-se directamente ao escasso público que se dignou vir ouvi-lo numa noite fria de Dezembro “good night Porto” e a canção seguinte “Who Can Say” ressalva os mesmos apêndices que a anterior com um acréscimo de distorção mas não deixa de ser tão ou mais urgente e violenta com os strobs a ribombarem ao ritmo dos beats (algo que será transversal ao concerto) e Faris Badwan sobre um ritmo pausado é de um dramatismo atroz fala/canta: “And when I told her I didn't love her anymore/ She cried/ And when I told her, her kisses were not like before/ She cried/ And when I told her another girl had caught my eye/ She cried/ And I…”; a quarta “In And Out Of Sight” é de um romantismo gótico synth profundamente incisivo e é amordaçante de tão bela a seguinte “Mirrors Image” versa o rock mas com uma melodia soturna pejada de psicadelismo com um loop exótico a seguinte “Sea Within a Sea” é de uma virilidade slow negra que é seduzida por um psicadelismo synth e encontra o Faris Badwan na frente do palco a cantar curvado sobre a plateia como se fosse um vampiro sequioso pelas almas presentes: “So say I walk alone, barefoot/ On wicked stone tonight/ Will you leap to follow/ Will you turn and go/ Will your dreams stay rooted in the shallow”; a sétima “Weighted Down” é de uma languidez synth e que oscila indolentemente mas que é manchada pela guitarra eléctrica de doze cordas que sobressai negativamente quase anulando toda a sua beleza prog dark e quase e quase no fim os The Horrors decidem ilustrar a seguinte “Press Enter To Exit” com uma pop assertivamente elegante mas delineada para levar os adolescentes a usarem eye liner com a voz do Faris Badwan melodicamente poética de tão dramática: “What does it tell you when you change into a stranger?/ What words can never be denied?/ When does it start to turn the shade into a shadow?/ How does your life become a lie?/ Questions unanswered/ You walk into the storm/ Because there's no point in waiting now/ For the promise of a cur” e é encerrada com um solo de guitarra eléctrica que a eleva à condição de épica e a nona “Endless Blue” sobrevém num slow que discorre esvoaçantemente do sintetizador que é transporto para um plano onde o rock se enrola com o synth como se estivesse a ser emitido num ecrã a imagem de um sol negro a iluminar o dia já “Still Life” é uma coroa pop que encerra o fantástico concerto; mas regressam e “Ghost” é uma space lullaby tão etérea quanto profundamente psicadélica e “Something To Remember Me By” é uma belíssima e elegantíssima canção pop que é como uma antítese a toda loucura sónica que emoldurou o concerto e que o público ruidosamente aplaude hipnotizados por terem assistido a uma efemeridade dilacerante; e as páginas seguintes são anúncios de prostitutas que oferecem massagens ou passeios relaxantes em SPAs paradisíacos rodeados por tubarões famintos por carne humana que lhes irá saber à de porco e a página central dá conta de um pianista que se suicidou depois de lhe terem descoberto um tumor maligno no cérebro inoperável e a sua fotografia corresponde a quem esteve a vida obcecado por um teclado preto e branco com uma cauda negra que poderá corresponder ao hábito da morte e numa outra mais pequena o rosto da viúva de óculos escuros para esconder a alma marcada por uma dor repentina e procuro no Youtube as músicas que o fizeram feliz e há variações diversas tocadas como se estivesse a ouvir ondas de um mar de Verão que recusa o negrume da noite e que é de tal forma sedutor que as oiço repetidamente para me sentir arrebatadoramente vivo e questiono-me como será o impulso suicida que vitimou milhões de seres humanos e suponho que seja mais poderoso do que o da vida e como tal deve ser eliminado como se fosse uma erva daninha.

The Horrors + Mueran Humanos, 09 de Dezembro, Hard Club, Porto.