domingo, 14 de janeiro de 2018

Angela`s Ashes

E depois aponto para a minha direita e descubro uma árvore a sangrar resina e se fecho os olhos a escuridão permite-me reclamar que ela não existe e se ainda sangra é porque alguém a abandonou numa floresta à espera do fogo para que seja feliz enquanto arde para se libertar do jugo do sol e quando chegar a chuva as cinzas correrão para contaminar o rio com a sua morte e absorvo a dor do seu desaparecimento para lamentar que não tenha sido eu a vítima de um pirómano ébrio e acrescento uns pardais que saltitam de galho em galho como se estivessem à procura de uma vista que os inspire a assobiar e a brisa propaga o som numa volúpia que banha a natureza com uma alegria contagiante de quem desconhece o pretexto da mortalidade como se fossem os verdadeiros e únicos filhos de Deus que os criou num dia em que nasceu a música e deu um sentido poético à natureza que se formou a partir de desertos percorridos por um vento serpenteante que lhes ofereceu uma pele ondulante e bronzeada que nas tempestades se soltava em rajadas que se espraiavam aleatoriamente em elipses que se cruzavam e uniam formando outras de maior dimensão que cavavam buracos no solo como se fossem pontos obscuros no cérebro de um ser humano; estou sentado na primeira fila do Teatro Miguel Franco à espera dos Wipeout Beat e dos Whales integrados no festival Clap Your Hands And Say F3st! nome inspirado na banda americana denominada de Clap Your Hands And Say Yeah! e são os de Coimbra os responsáveis por abrir o palco e as nove canções versam a synth pop alicerçadas em teclados que rejeitam um fraseado fora de moda e por isto remetem para uma memória em que predominava a inocência na música electrónica e se isto é obviamente um elogio também o é a capacidade de a partir desta premissa evocarem a repetição o minimalismo o kraut rock e o jazz sem que haja uma clivagem estética entre cada uma das canções e esta homogeneidade dá-lhes uma coesão que obriga à concentração para usufruir assertivamente deste universo que é tão estranhamente belo; que demora em aparecer na paisagem e quando surgirá é para a calcorrear num sacrifício em nome de um messias que lhes ofertou uma outra vida depois da que estão a vivenciar e que lhes deu a esperança de continuar a caminhar em direcção a uma terra prometida onde poderão ser felizes mas esse dia está tão longe e adoraria ter sido um dos primeiros peregrinos que deram um novo sentido à fé mas não fui agraciado com tal privilegio porque neste momento não estaria acorrentado a um tempo em que domina o supérfluo; os Whales apresentam um conjunto de canções muito bem trabalhadas segundo um principio synth pop arty e conseguem-no inúmeras vezes mas há uma heterogeneidade que as separa nomeadamente quando se remetem somente para uma premissa que tem como objectivo animar a pista de dança ou quando arriscam uma complexidade que nem sempre é devidamente assertiva mas há que ter presente que são adolescentes e este facto não só os absolve como poderá ser visto como uma mais-valia já que são suficientemente ousados para não serem unidimensionais porque estão predispostos a sintetizar a electrónica em diferentes e variadas vertentes e impregna-la com uma profundidade estilística que ainda está por ser explorada (a seguir com atenção); que está indubitavelmente associado ao vazio que pode ser contagioso porque está constantemente em saldo ou em promoção e transforma o consumo em algo pornográfico como se houvesse uma guerra santa entre as empresas e as pessoas que fazem dos seus logótipos símbolos que os dividem umas das outras mas as unem a um mesmo destino em redor de uma moeda que não vale o passaporte para a felicidade e prometo que assinarei uma petição contra a especulação das almas no mercado de valores onde são o reflexo de números que as sucumbem a uma passividade absoluta num lugar idilicamente volátil alimentadas por um pecado mortal como a fama que é o cancro do povo que pode ser mitigada com o uso da cannabis que simultaneamente os aliena e os liberta do amor pelos objectos de luxo para os pobres do espírito.

Clap Your Hands And Say F3st! (Whales + Wipeout Beat), 12 de Janeiro, Teatro Miguel Franco, Leiria.