domingo, 28 de janeiro de 2018

Briefe an Felice

A lista de compras é extensa e inclui tofu e bananas e maçãs para decorar a fruteira e esparguete e não posso deixar de acrescentar o patê para os gatos que se roçam nas minhas pernas a miar parecendo que estão com fome obviamente não se preocupam com a linha ou são vítimas de anorexia e na despensa certifico-me se ainda há chocolates da Nestlé e farinha para o bolo de aniversário de uma pessoa enterrada no Cimetière du Père Lachaise em Paris ocupado por tantas figuras distintas quanto inolvidáveis como o Jim Morrison que não tem paz pois há flores e fotografias dos Doors sobre a sua campa; estou em Leiria no teatro Miguel Franco que tem como convidados os The Rooms e os She Plesures HerSelf inseridos no festival Clap Your Hands And Say F3st! e os primeiros a tomar conta do palco são os leirienses que apresentam um conjunto de seis canções marcadamente rock mas com ramificações discretas ao prog e ao hard mas há algo que vai para além destas denominações que é a desenvoltura e o primor com que as executam assim como a capacidade de arriscar o improviso que quando resulta é de facto soberbo e ainda há um músico virtuoso que se encarrega da flauta e da harmónica e que as tolhe de uma profundidade psicológica que as torna inesquecíveis; contrariamente ao Franz Kafka no The New Jewish Cemetery em Praga que tem folhas verdes e secas iluminado por velas das quais escorre cera para a pedra tumular tingida de neve o que une o escritor checo ao Rei Lagarto é o amor às palavras através das quais transcreveram universos em que dominava a opressão social ou cultural sobre o direito do individuo em se emancipar em algo que lhe permitisse usufruir da vida livremente e algo impede-me de sair de casa e procuro na estante a “Metamorfose” e tento recordar-me do que senti enquanto estava imerso na narrativa que documenta a dor da não-existência através de um ser abjecto que em tempos encarnei mas as minhas notas são tão sucintas que não consigo perceber o que significam e frustrado arrumo-o entre duas enciclopédias obsoletas e numa capa encontram-se fotocópias das cartas de Franz Kafka à Felice Bauer e que são de uma intimidade desconcertante porque revelam um homem absorto em inseguranças atrozes impelido por forças antagónicas que o dilaceravam como era o desejo e a repulsa pelo amor num processo em que dominava um desencanto que o impedia de sonhar sem que estivesse a vivenciar um pesadelo marcado pela incapacidade de se adaptar aos mecanismos instituídos pela sociedade do início do século XX perante este quadro tão obstinadamente opaco a leitura deve ser pausada para que se consiga ir ao âmago (se tal alguma vez for possível…) de alguém que se nutriu da energia da Felice Bauer para escrever desalmadamente e da qual se recusou ser refém e a forma como o conseguiu foi de facto inusitada de tão maquiavélica; os She Pleasures HerSelf são um quarteto de synth que canção após canção aprofundam o gótico e este é explorado na sua raiz mais negra coroada por uma voz soturna e grave que é como se fosse um ponto negro que ora diminui ou aumenta de diâmetro conforme as tonalidades da melodia o exigem e por vezes no ecrã são projectadas imagens de mulheres nuas que parecem estar absortas num universo paralelo onde graça a sensualidade que contrabalança com os cabedais negros com pontas de metal que alguns dos intervenientes envergam destes há a destacar o cantor com uma cabeleira cor-de-rosa que contraria o negrume da sua roupa e o caracteriza como se fosse um clown que se ri simultaneamente da vida e da morte e a sua movimentação ora é de alguém que embate violentamente com uma correia no chão de madeira ora se insinua ao público através de uma ambiguidade sexual que é perturbante e segundo este composto desconcertante há que sublinhar que são uma força imparável disposta a conquistar os preconceituosos que por norma desqualificam quem é mensageiro de algo tão ameaçadoramente distorcido; e ensaio ler em voz alta uma das cartas a exprimir um timbre da voz de Kafka que seria grave e pausado ou suave e ritmado ou um contínuo inexpressivo como se estivesse a projectar-se num reflexo monótono não sei qual deles será ou se as propostas se encontram próximas da cadência do escritor judeu e raramente encontro o termo “amor” somente uma insatisfação que a natureza deste e de outros sentimentos que promovem a felicidade aliás esta tem a conotação de infelicidade como se o facto de ser aceite por uma mulher lhe obliteraria o impulso da escrita e o castraria e Kafka passaria a ser a rotina de um homem casado que o transmutaria em algo que iria anular o seu “eu” em favor de uma relação vulgar que o limitaria a escrever o diário ou a ler os clássicos como forma de colmatar o seu amor pela ficção.

Clap Your Hands And Say F3st! (She Pleasures HerSelf + The Rooms), 26 de Janeiro, Teatro Miguel Franco, Leiria.