O posto de vigia iluminado por candeeiros nocturnos está grafitado com uma foice e um martelo sobrepostos por declarações de amores eternos e pactos de sangue com erros ortográficos celebrados por dealers desonestos e há um “fuck you” em letras gordas como se fosse um tag para todos os leitores e num canto em palavras gastas encontra-se o termo “vulva” que deve ter sido inscrito por um letrado no corpo humano e percorro uma rua em que impera o silêncio que é acarinhado pelas ondas marítimas que banham a muralha e aproximo-me de um pórtico que transponho lentamente e a luz do meio-dia contorna-me e ganho uma volumetria mais alta e ampla e o meu sorriso é de uma sensualidade inesperada e o vento quente penteia-me desajeitadamente e passo a mão pela cabeleira com caracóis e enquadro-as sobre o meu olhar e parece que as suas linhas determinam um futuro ficcionado por um ditador e sinto o calor de um Verão que me acompanha desde que nasci e revejo-me deitado num berço em que os meus pés de criança encaixavam nas grades de madeira onde me sentia um prisioneiro passivo perante a possibilidade de fuga e tenho vontade de chorar como o fiz durante essa tarde em que o meu quarto foi conquistado por estranhos; estou no Teatrão acompanhado pelo Victor Torpedo que simula gestos de boxe em direcção ao Carlos Mendes que não se esquiva e o agressor comenta “e eu estive ali mais de meia hora e o gajo não me conseguiu acertar” e rimos juntamente com o Samuel Silva e o Carlos Mendes vira-nos costas e observa “o meu nome não estava na porta” e o Victor Torpedo desarmado responde-lhe “pois… este gajo [Natty Bo] é demais tu vais delirar…” mas o seu amigo desconfia que isso não se irá concretizar e mete as mãos nos bolsos como se estivesse a contar o prejuízo e o Victor Torpedo confessa que o “Natty Bo foi o primeiro a dar-nos a mão em Londres” e “eu morava no Soho” e “ele é um dandy” e a “Señorita Scarlett é portuguesa” e quem a apresenta é a Ruby Ann “directamente de Londres para o Teatrão a Señorita Scarlett” e quando soa “I Put a Spell on You” ela entra na sala e é contornada pela multidão e somente perspectivo a sua cabeça lateral a uma máscara diabólica e frustrado refugio-me no exterior onde estão diversos amigos a conversar e a fumar; mas a luz que insiro através do meu olhar para o interior impede que tal se consubstancie e fugazmente surgem diversas imagens que são tão rápidas que não consigo estabelecer uma associação que justifique a sua segregação mas permito que o seu fluxo seja contínuo para me libertar da dor do isolamento forçado entre o meu estágio de desenvolvimento e o adulto; e quando regresso à sala já se encontra no palco Natty Bo And The Perigo 5 que iniciaram uma viagem com epicentro na Jamaica dominado por um groove que impõe que o público dance efusivamente e por vezes os metais remetem para calyso proveniente do carnaval com origem em Trinidad y Tobago e que as tolhe de com uma festividade que encontra no Natty Bo uma voz grave e segura que é quase perfeita na forma como se sobrepõe ao ska e lhe confere uma autenticidade desarmante e assume o papel de um exímio mestre-de-cerimónias quando pede ao público para dançar como se tivesse maracas nas mãos ou determina que todos se agachem e que se ergam lentamente e em ambas as ocasiões é correspondido e sempre que lhe é possível dá destaque a quem está a solar seja o teclado ou trombone de varas e perante esta nobreza há que sublinhar que Natty Bo não é somente um “dandy” mas acima de tudo um gentleman porque os músicos que compõe os The Perigo 5 são portugueses com os quais ensaiou durante a tarde mas isso não se nota já que a maioria dos temas estão muito bem delineados e com solos memoráveis em especial pela dupla de metais e não posso deixar de testemunhar que a fluidez entre o público e o Natty Bo And The Perigo 5 é de tal forma simbiótica que decorre uma libertação colectiva que se coaduna com um espírito que oferece o amor pela música; e numa esquina está um idoso sentado a olhar para o mar como se não existisse e retira do bolso uma Bíblia que folheia aleatoriamente revendo uma sucessão de palavras em movimento que não têm tempo de se emanciparem através da parábola e pousa-a ao seu lado e deixa a sua mão sobre a capa para imaginariamente se converter em algo sagrado e ecoam sinos pré-gravados da torre da igreja que afugentam as aves migratórias e perturbam os morcegos dependurados num poço abandonado; surge a Señorita Scarlett ao som de uma música que a faz dançar como se estivesse a revelar um corpo sensual que veste um top e umas cuecas de cetim e a música muda para uma outra mais ritmada e ela abana os seios no interior do top e eles parecem que crescem e faz suspense enquanto o tira e antes que isto suceda o Pedro Antunes parece que a está a vê-la nua algo que me faz rir especialmente pela forma como movimenta a cabeça e o tronco como se estivesse a ser vítima de um espasmo e ao despi-lo revela um sutiã pequeno que lhe encobrem os seios pontiagudos; e despertam um gato que aproveita para lamber o seu pêlo negro com manchas brancas pelo dorso que desconfiadamente me vê passar e na sua mira sou uma figura tolhida por uma luz que me distorce e prossigo sem que tenha noção que tal estivesse a decorrer e reflicto sobre o posto de vigia e não compreendo porque não foi alvo de uma mente anarca que teria riscado um A com uma circunferência em seu redor ou de uma ataque racista como o que vitimou Alcino Monteiro no Bairro Alto em 1995 mas mesmo que tenha vontade de voltar atrás para o rever o tempo em que me movo impede que me ausente para o passado e dessa forma teria tentado evitar o homicídio perpetrado por cinquenta cães de caveiras rapadas com tatuagens de cruzes suásticas nos seus caninos ensanguentados.
Natty Bo And The Perigo 5 (André Reveles, André Gatões, Joana Veneno, Nuno Ribeiro, Ivo Xavier) + Señorita Scarllet, 18 de Janeiro, Teatrão, Coimbra.
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