quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Misérable miracle

Há uma beleza rebelde no ar que plana como uma pomba branca que pinga sangue sobre os vidros de carros estacionados em redor de árvores vadias e ouve-se o grasnar de uma cegonha grávida de nove meses que procura um poste de alta tensão para ter o filho e num beco aglomeram-se seringas de botox que são pontapeadas por cavalos que defecam para deixar um rastro de dever cumprido e uma bandeira azul com ossos cruzados numa caveira é içada por uma delicia do mar e simultaneamente o hino nacional irrompe de bocas disléxicas que trocam os “vs” pelos “bs” e omitem os “rs” num nexo causal que prima pelo desafino e algures há um cruzamento de informação de cabeça para cabeça num “bip” bipolar descoordenado num dia noite no outro dia menos um para a eternidade e talvez num quarteirão se passeiam ratos de esgoto como prostitutas à procura do céu tingido pela esperança de que as estrelas brilhem por elas e no cimo de uma vertigem agreste surgem espectros que se dissociam da realidade numa sobreposição intermitente como os versos intercalados de um soneto assinado por um antónimo e o “ZZZ” de um eclipse num vitral cerceia a córnea e a fere numa mancha negra de soldadura que une nus artísticos filmados por uma câmara de vídeo amador que uiva de prazer e transmite para a fita magnética que se enrola num círculo negro a acção censurada por um “X” de um canal de TV generalista; encontro-me em Coimbra no Teatrão a propósito da estreia em Portugal dos Soft Grid um trio que opera através da voz (de duas das cantoras) de dois teclados e do baixo e a guitarra eléctrica um violino e uma bateria e as seis canções que na sua maioria ultrapassam os sete minutos são dominadas por estruturas que partem de um principio synth ou rock que com o decorrer do tempo se transmutam em algo mais complexo pois intercalam as diferentes partes promovendo a divagação ao ouvinte que tem o papel de construi-las segundo as suas capacidades cognitivas e é isto que torna o concerto em algo tão precioso quanto fundamental porém há que sublinhar a ausência de mais efectivos na plateia que devem ter ficado em casa à volta de uma fogueira de ócio; depois de antes e subsequentemente limitam-se as linhas de um jogo em que perdura a sobriedade e a vitória é para os perdedores que licitam epopeias com a convicção suprema de que representam o seu imaginário numa fuga calculada ao lugar-comum que aborrece o espírito e o torna tão miserável quanto invertido numa prática típica de um colectivo suicida registado num sindicato com um símbolo excêntrico e de uma bola de espelhos são reflectidas as cores de um very light que indefinidamente decoram a caverna de um físico a experimentar cálculos durante o Verão e nos intervalos abastem-se em comparecer à parada dos seus contemporâneos que se regem por leis que dinamitam a Terra e num semáforo está um esqueleto a acenar adeus a quem passa sob a chuva e lhe respondem efusivamente uma primeira e última vez uma e outra vez e no topo de um prédio há um foco de um tronco em auto-combustão que incendeia o quarto crescente da lua de papel do candeeiro do tecto com fronteiras em estuque e num parque infantil elimina-se a solidão pois um cão de crómio cheira o pó como se fosse cocaína e se afasta rapidamente a fungar como um fugitivo e insurge-se um tempo que se encontra suspenso e que congela ilustres em metal corroídos pelas chuvas ácidas e acrescento que num estábulo há uma luta de galos que se rebelam contra o poder da abelha rainha à qual o carteiro entrega uma carta com remetente anónimo.

Soft Grid, 6 de Fevereiro, Teatrão, Coimbra.