Antes que anoiteça está um dia tão bonito com abelhas a esvoaçar no fel de uma mulher com mulherezinhas que se rodeiam de árvores de fruto que apodrecem nos ramos a domesticada engole as pepitas negras paridas pelo esturjão porque “sempre que sente fome”(1) se apropria de uma dor transversal que se repercute pelos ossos e “pensa logo se é capaz” de continuar a se destacar das suas companheiras viciadas em desbaratar a sua língua num jogo sujeito a uma rotina elementar que a obriga a “pesar tudo o que come” e a amar anar que asperge em água benta para crucificar o cancro que a viola “pela frente ou por trás” por vezes deita-se na cama a contemplar os frescos do “Inferno de Dante” do William Blake onde constam a sua mãe e a sua madrinha que “chamavam-lhe Miss simpatia – Querida”; Rua Direita são uma banda em que domina a pop/rock com influência dos agrupamentos portugueses que dominaram a década de oitenta algo deveras raro e como tal se deve valorizar já que é uma herança rica em ousadia mas pobre em termos estéticos e é precisamente este que é sublinhado pelo quinteto pois as soluções são limitadas e as letras são tão exasperantes quanto unidimensionais e ainda acresce negativamente a forma e o modo como o vocalista & guitarrista se expressa no intervalo das canções revelando uma ironia boçal; e despe um jogo de ténis e o olhar dos pederastas e uma máquina cospe bolas que saltitam para fora do meu campo de visão e atingem a rede ou abandonam o rectângulo verde e talvez somente ela “era um caso de anorexia – Linda” e vivencia um dia discriminatório onde o sossego predomina num livro com folhas secas nas quais se associa às imagens das revistas que repetem as fotografias do meu corpo que se desdobra em sorrisos tímidos vestida com a moda de ontem para usar quando saia para jantar ouve-se a sussurrar “sempre que morre um homem… Uma mulher tanto faz” pausa pautada “enterra-se bem depressa/ A elegância sob as pás” um ritual de espelhos que se intercalam com o seu rosto lunar que se apraz se for servida segundo as regras determinadas por uma missa de viciados no poder que lhe lambam os fósseis de filigrana paradoxalmente fragilizada “sempre que sente fome” algo que a enjoa a vomitar as miligramas de pão de centeio e pela centésima vez assume-se na balança para “pesar logo se é capaz” demoradamente percorrer os canais de rega gota à gota que se granulam na sua pele em que nós existimos e toca-se as harpas que a abstraem da rotina “pensar em tudo o que come” mesmo que seja dolorosamente apetitoso “pela frente ou por trás” e no furo esconde-se uma virgem no quadro “O Nascimento da Vénus” de Sandro Botticelli e não acredita que alguém irreconhecível e vários rádios “chamavam-lhe Miss simpatia – Querida”: Luís Severo surge de trás do pano vermelho do palco do Teatro Miguel Franco e somente com uma guitarra acústica inicia o seu concerto e canta através de um timbre melodioso que confere aos seus versos pop um poder subliminar quando se senta ao piano preto de cauda revela-se um músico que tem um domínio apreciável sobre um instrumento complexo através do qual as canções ganham uma melancolia atroz de tão bela e que se aproximam à métrica da música clássica e ainda há a realçar os seus poemas que versam sobre uma cidade imaginaria que é Lisboa que é espelhada numa mulher com sete colinas e em cada uma se encontram os sete pecados mortais que reflectem os impulsos mais primários e que são contaminados por um amor onde domina a ausência de uma interlocutora que não tem rosto ou corpo mas que encontra na voz do Luís Severo a sua alma; prostra-se sobre uma almofada zebra e sou uma exótica traficada nos antros da especialidade trocada por ruminantes com duas corcundas movediças e os planos de fuga estão desenhados pela minha mãe que nunca “trocara hambúrguer por melancia – Linda” que habita no frontispício de uma missiva azul onde dorme o seu nome numa morada próxima que reza por mim “e que tal fruta & Cia. – Querida/ Sempre é melhor que ter barriga – Linda” envolta num tropicalismo kitsch fala e fá-la “pesar o que come um homem” estica as próteses de fauno suaves de cacto ao qual retira cruelmente os picos de cera gástrica que a arreliam perante a iminência de que a “ uma mulher tanto faz” e tenta rodopiar em pontas sobre um círculo que circula na sua cabeça num gesto de viciação insatisfeita que redunda na paranóia que lhe reproduz uma forma que a domina “sempre que sente fome” onde geme o meu falo “pela frente ou por trás” aceito a rivalidade de espermas mascarados que assaltam o meu útero policiado por um dildo de fancaria e venho-me numa descarga de fluidos e esquece que “chamavam-lhe Miss simpatia – Querida” e na cacografia espera uma menina-- Linda que a garça branca anuncia que “afinal era um rapaz – Lindo/ Vestia casca de banana – Querida/ E na cabeça um ananás – Lindo/ Chamavam-lhe Miss Simpatia – Querida/ Era um caso de anorexia – Linda”.
Clap Your Hands And Say F3st! (Luís Severo+ Rua Direita), 10 de Março, Teatro Miguel Franco, Leiria.
(1)- “Ananás” (poesia de Rui Reininho e composição de Tóli Cesar Machado) canção incluída no álbum “Mosquito” (1998) dos GNR.
domingo, 11 de março de 2018
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