quinta-feira, 12 de abril de 2018

Christabel

O Teatro Académico Gil Vicente encontra-se a um quarto da sua lotação para receber Chrysta Bell acompanhada por um guitarrista que suponho que é o responsável pela injecção das bases sonoras e por um baixista e baterista; um eunuco à janela assobia uma Primavera que melodiosamente se traveste de Outono e contamina com melancolia a paisagem de pasto selvagem ruminado por vaquinhas vegetarianas que lhes amaciam a pele destinada a estofar carros de luxo ou a ser despida por modelos esfomeadas e o silvo ondula sobre a força do eco de uma brisa marroquina de grevistas que expelem mecanicamente ordens onde não há lugar para o sonho nem o desejo de abdicarem das repartições inócuas que representam uma peste que favorece a construção de montanhas de betão com a configuração de casulos onde uma borboleta põe ovos violados por aranhiços que se satisfazem em ejaculações precoces e num palco com um oratório pousa a Nossa Senhora de Fátima rodeada pelo Tony Carreira e pela Judite de Sousa que dá a mão ao filho do Espírito Santo e se acendem archotes de cera que vertem lágrimas de vinho tinto e as ovelhas tosquiadas do luto rezam por um sacrifício apostólico romano e acreditam que as fronteiras que as aprisionam são a sua salvação aquando do abate no matadouro municipal propriedade de um veterinário amante de burros e de mulas de estimação que os servem num banquete para os amigos dos animais que à entrada do Bricomarche pedem alimentos para cães & gatos abandonados durante as férias de Agosto e desde que haja a estação seguinte que tenha as cores sépias que cobrem os cemitérios com campas de mármore com fotografias de casais e os caixões de choupo sobrepostos mas separados pela terra perfurados por vermes que lhes sugam o tutano e os olhos e os transformam em caveiras que os perpetuam no anonimato que proporciona a decomposição; e as canções são marcadas por um pendor maioritariamente hipnótico através da repetição dos acordes que proporcionam um universo em que impera uma densidade cromática que institui um negrume visceral estruturadas no blues e no rock e ou no trip hop nos quais imperam uma transposição para algo surpreendentemente sublime e revelador de um universo fílmico que arrepia mas há um elemento que tem a função de ser o fio condutor de uma narrativa em que domina a dor e o isolamento como pontos que representam o vazio e por natureza instigam a angústia; e de um outro estado ouve-se o coaxar de rãs que em coro são um cântico de paz amor e a esperança que sejam descodificados pelas massas que os multiplicam em favor da ganância pela ganância numa cadeia que retém os fluidos e os torna em gordos com pele de laranja que está sempre arrepiada e por vezes os tractores lavram os diários redigidos por escritores que perpetuam o lugar-comum e semeiam nas nossas mentes um vácuo pernicioso enquanto um espantalho atrai os pássaros que se equilibram nos seus braços com tatuagens nazis e por ali ficam na expectativa que passe um avião e lhes atire com sacos de sementes destinados a lugares inóspitos onde proliferam bexigosos que a indústria farmacêutica ignora porque nada têm a ganhar com as suas mortes prematuras e se for condecorada por mérito e dedicação à causa humanitária é porque representam vinte por cento do PIB e uma sopeira percorre um carreiro sinuoso que a encaminha para uma maternidade onde conhece o neto que estranha uns braços que o apertam para que o amor seja ternamente transferido e o choro é revelador que se encontra distante do sua caverna aquosa e a luz branca força-o a espreitar para um tempo no qual é-lhe obrigado a continuar a crescer; e essa é Chrysta Bell que pontualmente se movimenta mecanicamente e outras enfrenta o público tentada a lhes subtrair as suas almas mas o seu rosto e corpo exalam uma sensualidade abrasiva no primeiro domina uma expressão de uma sonâmbula que está a viver um sonho em que é normal e as suas pernas vestem calças apertadas de lantejoulas e as suas costas uma capa e o tronco um top com mangas largas que remetem para as deusas do antigo Egipto e este não espelha o seu interior de diva das trevas que através de uma voz digna de uma cantora lírica é um fluxo que nos conduz à perdição no mínimo épico.

Chrysta Bell, "We Dissolve", 11 de Abril, Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.