domingo, 1 de julho de 2018

Poesia e Metafísica

Não sonhes com as montanhas a desmoronarem-se talvez se te permitires poderás regar as plantas com café e não desesperes se o pé cresce e te impeça de calçar o sapatinho de ballet e é por isso que não queres crescer como as flores que regas com chá porque é mais chique fico triste com esta discriminação sabes que as pessoas querem ouvir sempre a mesma canção para recordarem os tempos em que eram felizes por instantes que se dissipavam instantaneamente e se escreveres um romance de cordel vê antes as novelas da TV onde poderás encontrar a inspiração para a história em que a personagem principal é uma menina que sonhou dançar ao lado de cisnes e de girafas embriagadas que espreitam pela janela e assobiam à lua grávida de milhares de anos e o pai tem o ADN da Terra única com vida no céu e na terra; as Señoritas são duas mulheres que ultrapassaram a meta dos quarenta a Sandra Baptista subiu há vinte e seis anos a um palco com os Sitiados já Maria Antónia foi a voz da Naifa e o ponto de ligação entre estas foi o malogrado João Aguardela e há sensivelmente um par de anos emanciparam-se e editaram “Acho Que É Meu Dever Não Gostar” e no Stereogun em Leiria têm como centro o recente “As Saudades Que Eu Não Tenho”; e não acredites que as pedras da calçada ficam pedradas com a tua passagem de nenúfar e se acenderes as luzes das tuas pálpebras verás com exactidão o contorno da luz sobre os corpos que se obstaculizam à tua passagem e nesse percurso meditativo elimina as vezes em que te alimentavas de um exibicionismo abjecto ou que repetias cenas sucessivamente cenas sem sentido ou direccionadas para surpreender os outros com a tua utilidade de bem cativo a um brilhantismo inexistente não chores meu amor porque a tristeza é exclusiva dos pobres dos portugueses; e as suas canções revelam-se através do fado mas não o seu decalque antes a sua evocação muito por culpa do timbre da Maria Antónia Mendes e em que ressalvam uma dor desmedida provocada pela perda ou o perder-se ou a derrota perante a inesgotável passagem do tempo se há um esgravatar com elegância neste género popular urbano não predomina o respeito antes a sua dissolução numa contínua tensão e as letras versam a crença pela religião católica misturada na alma dos portugueses e este primeiro bloco ainda deriva do álbum anterior e que é executado sobriamente; e não procures o sapatinho que perdeste numa noite de sexo com uma abóbora e te tornaste num anjo papudo igual aos que decoravam os lençóis e a tua companheira numa princesa com castelos e montes e rios e com falo de plástico para te aparafusar à parede como um urinol assinado pelo Duchamp e ficarás exposta num museu do século passado envolta numa redoma de vidro para evitar que os fundamentalistas religiosos te cuspam ou te mijem para a boca e se não é suficiente elevar-te a obra de arte é porque a tua satisfação é sucessivamente deglutida quando escolhes um espelho em que és linda mesmo que tal seja mentira; a segunda é pautada por programações que oferecem às canções uma portentosa tonalidade pop e a isto deve-se somar a voz da Maria Antónia Mendes que ganha um outro poder maioritariamente narrativo sem que se associe a uma frieza que tal poderia originar antes exercendo um poder lúdico em que sobrevém uma ironia imune à crítica antes questionando os propósitos que compõe a consciência do homem moderno prisioneiro às coisas pequenas que lhes são oferecidas indiscutivelmente desconcertante; não escutas as Mil cores no Ar fragmento de um poema do Mário Sá-Carneiro folheia-o devagar porque é um homem de pena carregada de negro um suicida em potencia tal como eu fui um dia como este azul pedra de esquimó a derreter-se com a passagem inóspita do tempo assegura que te fazes ao vento e te deixas absorve-lo e poderás rodopiar em redor da tua cova ou berço húmido cavado para que sejas comida pelos vermes e na lápide o nome de uma cidade à beira rio e nas margens os contentores formam um muro que impede que te assomes aos marinheiros sedentos de amor e carinho ou de uma vagina tagarela; e há um minimalismo pop que une os dois pólos que aparentemente são opostos quando na verdade representam uma visão afunilada sobre a sociedade portuguesa que ignora sucessivamente que é escrava de conceitos e preconceitos que há muito deveriam ter sido dirimidos para dessa forma terem a vontade de olhar exclusivamente para o futuro; não continues a ler peço-te que te concentres nas andorinhas viúvas desde que nasceram de amantes que as trocaram por Marrocos para ver passar o William S. Burroughs intoxicado e disposto a disparar sobre a maçã colocada sobre a tua cabeça ouve o estoiro e o grito que a calou para sempre essa ressonância elucida-me sobre a viagem que empreendeste sem retorno a casa esse ponto de partida para um outro pólo onde se encontra a raiz de uma ilha que é escrava das marés.

Señoritas, “As Saudades Que Eu Não Tenho”, 29 de Junho, Stereogun, Leiria.