terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

João Aguardela, esta vida de marinheiro – Dos Sitiados à Naifa, a rasgar a vida

As vozes cantam para um Rei sentado num trono a fumar o cachimbo de ópio para se desenfadar dos dias penosos a emergir dos lençóis de linho e da janela apenas encontrar o casario coberto de neve que o impede de ir à caça da raposa ou de cortejar uma das aldeãs que se remetem para o interior dos seus abrigos para se aquecerem à lareira todas lhe pertencem de corpo e alma assim como os seus filhos mesmo que sejam fruto de uma relação extra conjugal e tenham piolhos e lêndeas a usufruir do seu sangue azul pouco lhe importa quem o irá suceder se a rainha-mãe ou o tio avó se alguém que seja esbelto e de cabelo enrolado à cintura e que toque harpa e faça graça da condição humana e que seja tão insensível quanto obstinadamente egocêntrico e faça de conta que não existe ou somente para si e somente para o espelho onde aparece um rosto enevoado a trautear uma ladainha infantil que secretamente o recoloca no seu leito de bebé robusto a babar-se sobre as notas do cravo que ecoavam pela barriga do seu castelo ao estilo francês onde mãos seguram archotes que iluminam o seu quarto com uma cama que lhe parece estranhamente maiúscula e movediça como uma barca de um trovador de cantigas de amor que é algo que até hoje não sentiu porque a sua mãe sucumbiu à dor quando lhe cortaram o cordão umbilical segreda ao ouvido de um Minotauro um sussurro inaudível e perante a inexistência de tal figura recusa-se a abrir o livro de contas para acertar os ditames deste dia e ao evadir-se para um outro departamento onde se esgrimem diversas sombras sobre a possibilidade de transgredirem a sua natureza e reverter para uma outra condição que lhes dê vida e logra replicar em favor de que tal transformação seja cumprida e se lhe oferecem uma porta de saída recusa-a; noite de festa para o blog A Certeza da Música pois celebra dez anos na Fábrica das Ideias na Gafanha da Nazaré a divulgar especialmente a música portuguesa e como tal homenageia João Aguardela (com uma exposição fotográfica do Jorge Buco ex-Sitiados) que hoje faria cinquenta anos com a agravante de ter sucumbido a um cancro há dez anos; a abertura do palco principal é da responsabilidade dos Lobo Mau que discorrem por um romantismo que liricamente é marcado por inúmeros lugares comuns assim como as canções de protesto (“Há fome nos dias de seca/ Há carne nos dias de festa”) e musicalmente são pobres porque remetem para um universo em que lhes é exigido um dramatismo pop (nas românticas) e uma clareza do uso da palavra para terem consistência e abalarem as consciências (nas canções de protesto); (palco do bar) Tio Rex é um jovem sentado numa cadeira com uma guitarra acústica que obviamente dedilha e a certa altura troca-a pelo banjo mas o resultado com ambas é constrangedor resumem-se às cantadas em português a decalques das canções de intervenção e as de carácter amoroso pecam por versos deste calibre: “Não levo animais comigo/ Só preciso de um abrigo”, e ainda arrisca o inglês e enterra-se numa sequência de temas que carecem de originalidade; (no palco principal) As Señoritas são compostas por Sandra Baptista e Maria Antónia não se sentem intimidadas pelo tamanho grandioso do palco antes através das suas canções expurgam a dor que está alicerçada no fado da saudade mas é apresentado como se fosse uma memória da qual parecem querer retirar as últimas lágrimas e esse dramatismo é cortado por canções acentuadamente pops que têm versatilidade suficiente para fazer dançar os mais incautos e se são sublimes em ambos é porque os seus mecanismos são simples e por isso eficazes e para o encore apresentam “Amanhã” dos Sitiados a banda que deu notoriedade a João Aguardela e da qual fez parte a Sandra Baptista que é sua viúva já Maria Antónia militou na Naifa a última banda do genial Aguardela e esta sublinha: “O João deixou-nos há dez anos e hoje faria cinquenta anos”; em nome dos seus mistérios e de outros superlativos encontros onde terá que intervir a favor ou contra algo que o entedia e tece considerações diversas sobre a sua solidão sem encontrar a justificação para ser um monarca de um reino com pirilampos que piscam à sua passagem iluminando a estrada de terra batida e o rio e os lagos se encham de felicidade quando atira uma flor com espinhos ao seu leito e esta segue para o país vizinho anunciando que os irá anexar para mitigar a sua solidão recebe uma comunicação de um transístor desavindo que cola as palavras umas às outras numa impossibilidade de entender se é um SOS ou um poema escrito por alguém que desconhecia o sentido musical dos versos algo que o deixa especado a tentar se enquadrar no tempo e no espaço e suporta-se nas pernas como se estas fossem umas andas que o agigantam e logra alcançar o céu e rouba-lhe uma maçã que oferece ao Minotauro que a recusa com um gesto agressivo e ri e continua a deslocar-se por entre montes e vales verdejantes onde as ovelhas e as cabras fazem fila para entrar num matadouro julga-se a si através de si mas desculpa-se por alterar a ordem estabelecida pela realidade e incrimina-se segundo as regras que estabeleceu e que não lhe permitem colidir com constelações vizinhas que explodem continuamente e que o cegam e a escuridão fá-lo rejeitar a infância e põe e ou tenta cavar na sua consciência um retorno que lhe indique as coordenadas para uma outra guerra onde não encarne num Minotauro sequioso por sangue.

10 Anos de A Certeza da Música, 2 de Fevereiro, Fábrica das Ideias, Gafanha da Nazaré.

Em memória do João Aguardela.