domingo, 3 de fevereiro de 2019

Sítio do Picapau Amarelo

Na praceta não há sinais que indiquem o caminho a percorrer para sair deste remoinho de casas envelhecidas que perdem restos de cimento ou têm as portas desdentadas o vento dita que o seu hálito gélido e seco movimente a antena vizinha de televisão enferrujada os cães ladram à passagem de um carro que segue para dentro de uma garagem improvisada de placas de amianto e no outro lado da rua mulheres sentadas à soleira da porta sob uma sombra de inverno da igreja observam um homem a passar por entre inúmeras poças de água da noite anterior que reflectem minúsculos raios de sol que por vezes são pisadas num ecoar de terra suja e se a sua caminhada é a de quem segue o trilho para um café fedorento a tabaco fumado por gargantas habituadas a emborcar o bagaço para matar um bicho matinal que nos tempos da infância não os deixava adormecer nem tão pouco a eventualidade de um papão os papar para parte incerta é algo que ainda hoje expurgam depois de mais um bagaço em modo de festa porque há uma vitória no futebol por parte dos encarnados encardidos de um suor de quem está disposto a continuar a correr mesmo que o jogo tenha acabado e ainda se ouvem moscas a suicidarem-se numa grelha suspensa no tecto da sala é mera imaginação de quem as vê como se fossem escravos que se cansaram de chafurdar na merda da civilização e seguiram para a fogueira onde os demos ardem e exalam o odor a enxofre de cadáver esquisito desenhado por anjos e serpentes como um biombo do oriente em madre pérola e pau-preto indo-português falam uns com os outros numa alegria intoxicada que não se transformara em ressaca porque a irão mitigar com o vinho do garrafão que em casa guardam debaixo da mesa de madeira carunchosa que sofre com as panelas a ferver e deixam marcas de buracos negros ladeadas por constelações de estrelas cortadas por um vinco de navalha que é cometa que rompe o céu noctívago; o Festival Clap Your Hands Say F3st! convida o Conjunto Corona e a cantora e guitarrista Carol que discorre esteticamente pela bossa nova e pelo tropicalismo dotada de uma voz melodiosa que faz do seu canto algo quase excessivamente meloso mas tal é somente um pormenor sem importância porque é de uma expressão eloquente de tão bela e a somar a isto a forma desenvolta com que toca a guitarra acústica e somadas remetem para uma urbanidade onde há temperaturas abrasivas e onde (mesmo na pobreza) reina uma felicidade contagiante; o Conjunto Corana são compostos por dois MCs e de um Dj/MC e ainda uma figura que inicialmente é um elemento figurativo e o hip hop é alicerçado num Dub dengoso que serve para pano de fundo para a poesia urbana que é duplamente alicerçada no escárnio e no gozo que este produz porque versam sobre personagens que podem ser gunas ou as famílias que passeiam nos domingos nos shoppings do Porto (de onde são originários) e ainda há uma vincada atitude machista que é retratada e por isso censurada e assim como o tráfico e o consumo de drogas isto pejado de tons irónicos profundamente chungas que esteticamente deve ser substituído pelo kitsch ah e o tal figurante é o representante de um absurdo pois é de tal forma alienado que é o exemplo vivo da consciência do bas fond que os Corona retratam fielmente-- somente arrebatador (sem caírem no erro de traduzir a cultura americana do hip hop para o contexto português algo que é infelizmente lugar comum em Portugal); há quem se sente no balcão e se aproprie do Correio da Manhã com as contas por pagar à Segurança Social e as dívidas aos fornecedores de substâncias licitas como o café e a cerveja drogas que se não os matam vão amiúde marcando o seu território nos diversos órgãos que trabalham segundo os ditames dos seus vícios têm os olhares presos num vazio em que é imperceptível a sua essência aparentemente ou virtualmente virada para um centro que ignoram e que lhes provocam uma contínua submissão aos poderes da igreja católica que tanto adoram porque não têm consciência que há liberdade para além dos seus dogmas e desconhecem o ritmo das cidades ou a realidade do Equador conversam sobre uma casa que alberga uma prostituta num anexo gélido com dois quartos com camas de colchões fatigados de tanto terramoto ou sismos tântricos e um bidé de onde escorre água gélida na qual lava a tatuagem na virilha que é o seu nome em mandarim que poderá ser Joana ou Tânia ou Rita e ainda Daniela fugidas de um mundo exótico onde barragens danificadas encarceram pessoas em barracas de tijolo colado com cimento arenoso e garimpeiros enlameados tentam irromper do lamaçal e animais tão selvagens quanto os índios estão mumificados para que um dia sejam descobertos e estudados para compreender em que tempo existiram e os alarves da tasca estão alheados de qualquer fronteira que os expulse do seu lugar que conquistaram de forma sofrida sob os desígnios de alguém que ainda idolatram por nessa altura terem tanto ouro quanto os ingleses ou os alemães esse era o seu Pai e sem o qual se sentem desamparados numa democracia que consideram hostil por tão corrupta.

Clap Your Hands And Say F3st! (Conjunto Corona + Carol), 1 de Fevereiro, Teatro Miguel Franco, Leiria.