Parece que tento alcançar algo que desconheço a sua forma e conteúdo pode ser o que bem entenda uma maçã ou um canivete suíço ou a cabeleira despenteada de uma velha de papel tenta-me risca-la da minha memória e espalha-la pela minha casa com sala mortuária onde se nasce e se morre consoante as estações do ano rubrico documentos sobre estatísticas como se fosse um respeitável funcionário público mas aparentam diários de um desconhecido que em tempos se fez passar por mim que por vezes encontrava no espelho a fazer a barba ou a procurar as cicatrizes delinquentes tento lê-lo mas a letra é ilegível mas esforço-me por descodificar esses dias separados por fronteiras movediças imersas num nevoeiro que se solidificava numa opacidade que esquartejava o meu cérebro tentava representar-me numa peça vaza de conteúdo e que me incutia a mortalidade que supunha numa sobreposição de impulsos que actuavam paradoxalmente subjugando a minha energia a um nível zero ou menos um ou dois numa variação continuamente negativa que me emergia um circuito de funesta e provável frustração que somente poderia ser mitigada pela ausência e a realidade era um tédio que era uma imersão no desencanto; Big Sandy & his Fly-Rite Boys são um quarteto da Califórnia liderados por Big Sandy homem de poupa e guitarra acústica a tira colo acompanhado por um contrabaixista e um guitarrista de guitarra eléctrica e um baterista que se encontram sobre um palco na Praça do Comércio em Coimbra à frente da CoolaBoola Colab (que se define da seguinte forma: “Co. de conceito ; Co. de cooperativa; Co. de co-Laboração; Co. de companhia; Co. de co work; Co. de concepção; Co. de Coimbra; LAB de laboratório de ideias; LAB de laborar; LAB de laboratório de experiências”) que é a promotora deste espectáculo e de outros como o que se realizou no dia dezanove no Salão Brazil pelos Colton Turner & The Melows e ainda Portuguese Pedro nesta mesma praça no dia vinte e este ainda irá tocar antes de Big Sandy e os seus rapazes algo que perdi por atraso rodoviário quanto aos californianos são visceralmente rockabillys mas com um travo de alguma latinidade que projecta uma América multicultural e consequentemente racial são músicos exímios porque fazem jus a uma herança que tem como ponto de partida uma linguagem rural que se transmutou para a urbanidade e que alterou radicalmente uma cultura predominantemente segregada que através da música encontrou uma ponte para uma outra forma de liberdade que até aí era inexistente esta é a revolução que Big Sandy enaltece e que é ora rocker ou um crooner latino mesmo que isto possa ser visto como um atentado ao rockabilly e não posso esquecer a beleza e a envolvência da voz da Ruby Ann ou a hillbilly prestação do Portuguese Pedro e ainda a quase tempestiva saída do palco do Big Sandy porque um jovem havia tentado agredir uma jovem e que provocou um pequeno tumulto no público; digo que alguém está a contemplar a paisagem mas esta afirmação carece de veracidade pois ao meu redor crescem outros que como eu se mantêm atentos às folhas que atiro para o interior de uma lareira que arde e o vento levará esses restos mortais como se cada um fosse carne da minha carne sangue do meu sangue através deste sacrifício mudo de pele tal cobra e irrompo subnutrido e com sede de leite materno e da carícia paterna se chorar talvez sejam satisfeitos os meus desejos se me calar voltarei ao útero ligado a um cordão umbilical que me alimentava com amor e onde persistia um contínuo escuro que se assemelha a um paraíso perdido algures no Mediterrâneo este é o último dilema da minha vida orgânica que me submete a uma pulsação cardíaca que perpetua-me como ser vivo mesmo que queira manda-la parar jamais respeitara a minha ordem o coração é um órgão que é um rei ou deus do diabo que alimenta um sistema de maquinaria do século XXI que transforma o eucalipto em papel isto é sonhos em pesadelos tento esquecer-me do seu batimento para inverter esse resultado e alcançar a maçã e entrega-la a uma estátua que se faz passar por uma odalisca algo que lhe atribui um exotismo decadente de objecto de puro prazer e perante o seu mutismo entrego-me em cada gesto desatento ou verbo perverso e expressivo oiço portas a rangerem se fossem gatos e isso seria perfeito mas tal é tão utópico que quase me faz parar a narrativa sobre a minha escrava que com outras se diverte a brincar às escondidas ou a assaltar as bolsas de prata que escondem o bilhete de fugida para um avião ou um comboio que se desloca furiosamente para o interior de um túnel com louras dependuradas por cordas enroladas ao pescoço que quando estavam vivas seduziam instantaneamente os homens debilitados e amestrados por mulherezinhas pobres de tão ignorantes mas não sei quem foi o responsável por este quadro aparentemente destituído de simbolismo talvez tenha sido alguém sem coração e por isso destituído de razão é possível que sejam meras bestas que ditam a desordem e um mal-estar nos grupos de feministas que lutam contra a instrumentalização da mulher tornando-a num objecto sem conteúdo.
Big Sandy & his Fly-Rite Boys, 21 de Junho, CoolaBoola Colab, Coimbra.
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