Há um sonho que é mutante e que se repete sem o encontrar reflectido na minha rotina de pedinte de palavras ou coleccionador de números se tal algum dia será possível parece que estou à espera do táxi mas mais uma vez nesta semana deixei-o passar não tinha o dinheiro para a corrida e a alternativa seria caminhar para o centro dos centros comerciais mas por outro lado quem teria a cordialidade de me transportar e por ver-me assim isto é sem alternativa tinha que arriscar a primeira opção algo que se equiparava a horas ao sol e ou à chuva quando esta era miudinha não sei que idade é que tinha nessa época talvez ainda deveria ser adolescente ou talvez na terceira idade porque me recordo que as pessoas tinham muita repugnância quanto à minha pessoa que julgavam suja e a cheirar mal algo que recordo com dor e pesar tão ferido quanto discriminado mas era tão-somente o reflexo do que me circundava que transformava o meu exterior em algo redutor e que no seu centro interior mantinha-se vivo o adolescente que por vezes se movimentava de forma oposta às minhas decisões de adulto por muito que me custe cala-lo em nome de um ideal de vida em que os sonhos são meras rotinas existencialistas e que talvez haja harmonia entre pares e seja celebrado mais um aniversário de casamento cada uma das etapas a percorrer parecem funestos encontros religiosos perante isto não consigo perguntar-me porque é que me tornei num utensílio subjugado a estatísticas e outras formas de estudar o comportamento humano e era consultado por diversos especialistas que redigiram extensas cartas a questionar-me sobre a veracidade dos meus cálculos que eram citados no Ministério da Educação; se fosse outra pessoa a surgir em palco essa seria Flak vestido para o Woodstock acompanhado por um grupo extenso de músicos virtuosos que se imiscuem no rock predominantemente psicadélico com solos épicos pela guitarra eléctrica de Flak ou mergulham no interior de uma pérola em que se vislumbra uma pop que remete para o lo-fi e se por vezes é prog esta é vilipendiada por uma turbulência rock que lhe é superior em poder sónico mas além disto há Flak a cantar como se estivesse a se revelar pela primeira vez; Diabo na Cruz são um retrato de dois ou mais universos um dos quais é ao cancioneiro popular português mas desconheço a proveniência da mesma apesar da guitarra braguesa que toca o cantor que está a substituir o lesionado Jorge Cruz e esta toada resume-se ao compasso dos bombos e a diversas e vagas divagações predominantemente estéreis por exemplo na música celta depois há a pop e rock e algum prog rock que resultam porque são bem executados mas sem qualquer criatividade inerente a esse processo e ainda soma-se a entoação festivaleira do cantor que é de facto um ruído; Moonshiners se fosse possível pô-los a secar num estendal na expectativa de que algum dos pingos fossem algo que não um rock and roll de tal forma tipificado que me surpreendi quando se dirigiram em português para saudar a festa da Rádio Fáneca pois julguei-os americanos já que é daqui que brota a sua sonoridade enleada em inúmeros lugares comuns que são um mero bocejo para além do nível técnico dos músicos ser de um nível baixo excepto o tipo do saxofone e o vocalista/harmonicista; Conan Osíris é um show digno de discoteca já que é música de dança diversificada por exemplo pelo ítalo disco ou a synth pop isto transversalmente misturado com samples orientais que lhe conferem consistência estética a isto soma-se a sua relação com o bailarino que por vezes é somente um figurante outras acende em si a atenção do público e por fim ou se calhar não as letras são diários de um escritor que transgride a lógica da rotina e lhe dá um significado difuso mas que entra em contradição com a forma infantil com que se dirige aos fãs por “bebés” seguido por algo inconsequente e há o reparo em relação à sua voz que nem sempre esteve afinada e com entoações que impedem a percepção do que canta; esses anos fizeram de mim um homem dependente emocionalmente por Cristina que tinha como figura uma simples sardanisca à qual por vezes pisava para a separar da cauda que a prendia à terra ela era pragmática e irresoluta nas suas determinações estilistas que se estendiam à decoração do apartamento que era predominantemente colorido de amarelo ou aos quadros com narrativas naturalistas copiadas dos clássicos franceses algo que ela entendia como “cultura” e dizia-o como se estivesse a perfumar-se com a palavra quando a traduzia para francês com alguma dificuldade e jamais saia de casa sem o cão pequeno de pêlo caído até ao chão parecia um trabalho do Mel Ramos e o cão por si só poderia constar na colecção particular do Jeff Koons e quando saiam para ver as montras o silêncio assemelhava-se ao ruído que ela fazia ao telefone ou então a ver televisão com as amigas para um chá perante estes rituais de consumo não sei se tal encontrava reflexo com a minha crónica falta de dinheiro ou se de facto a Cristina existiu mas foi num outro sonho que poderia ter redundado em pesadelo mas ela era de facto de uma beleza decadente por não encontrar no espelho o seu rosto mas o que fora idealizado como o mais belo e essa máscara tornava-a única por ser tão sedutora perguntei-lhe o que estava aqui a fazer o retrato de um rei e ela sorria como se algum amante tivesse esquecido uma peça de roupa íntima e de seguida um sorriso seguido de um silêncio nervoso e o argumento é que era da autoria de um artista plástico onde se devia “investir” o D. Carlos estava tão gordo que era difícil de o identificar talvez através do bigode fosse o centro do seu rosto algo que era destituído de uma estética filial ao original ao aumentar-lhe o peso o seu poder real decresce pois jamais seria visto como um modelo pelos soldados que lhe foram fieis e por outro lado tornava-se um alvo fácil a potenciais atiradores como acabou por suceder mas sobre este episódio a Cristina não me ouvia e eu não a censurava talvez um dia abandone este palco e volte a ser quem um dia se sonhou como livre.
Festival Rádio Faneca, 7 e 8 de Junho, Ílhavo.
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