sábado, 13 de julho de 2019

Rita Lee - Uma Autobiografia

A minha carreira de carteirista é a prova de que não valeu a pena ter estudado numa escola comercial a aprender a costurar tapetes de Arraiolos ou direi antes coser sim de facto parece-me mais apropriado ao que fazia durante as aulas em que escolhia o desenho a partir de outros tapetes de sangue azul e adorava estar a estudar o movimento dos mosquitos em redor de um cadáver mas estou numa de costurar as palavras às folhas de alface desde que nasci vindo de um outro tempo em que os humanos eram canibais nessa altura a minha felicidade dependia de alguém que tivesse sido engordado a bolota e destinado ao espeto para as festividades da nossa vila de cavernas herméticas e cubatas com prostitutas oriundas de galeões perdidos no oceano e o ritual obrigava a consumir o seu sangue para nos apropriarmos da sua alma ou da sua força interior já que a alma é uma invenção posterior e da qual me nutro hoje nesta terra difusa de cores modernas e pós-modernas que são de uma fraqueza displicente carregada de tantos ecrãs quanto olhos que adormecem para reinventar o sonho pontuado por crocodilos que choram por se aproximar mais uma tempestade de ossos esvoaçantes cuspidos por outros tempos se fossem novos e hirtos seriam jovens a saltitar por entre girassóis humanos há fogos diversos que libertam um fumo negro como o do meu cachimbo de água envenenada colho dois versos de uma planta carnívora e tento tanger a minha lira às mulheres que passam nuas mas segundo uma perspectiva romântica em que as partes intimas são de uma delicadeza que as torna em pontos de uma subtil beleza suave e prontas a se erguerem perante as disfunções de uns garimpeiros que lhes escavam a pele à procura de gelo; nos claustros do Museu Machado de Castro em Coimbra—que recentemente foi integrado na área classificada pela UNESCO como Património Mundial da Universidade de Coimbra, Alta Universitária e Rua de Sofia— decorre a feira de troca de roupa usada dominada por mulheres de diversas gerações algumas com os seus filhos que saltitam como pequenos sapinhos de corda e a proposta musical deste evento recaiu no colectivo de três rapazes (Carlos Dias, Miguel Padilha, Pedro Antunes) que se denominam de Seam Beat Experience (estes músicos apresentam a sua terceira mutação em quatro anos) acompanhados pela Agente Costura e os seus Dedais Cósmicos e a sequência sonora que se prolonga durante uma hora é a de um som minimalista que se revela de forma progressiva poderá ser uma desconstrução do trip hop mas segundo os ditames do Brian Eno por ser lenta e nessa medida processar um tempo abstracto que se insinua através de um negrume quase psicadélico e tal seria possível se não estivesse um céu tão abertamente luminoso que parece de luz suspensa no ar antes se fosse raivoso e estivéssemos próximos da meia noite seria perfeito quanto à Agente Costura manipula diversos utensílios associados à costura e que ora corta ou cose e até corta as costas de um vestido negro de uma estranha com uma tesoura ligada a pedais e a outras divagações da ordem do doméstico-- veja-se o exemplo da Paula Rego que pinta mulheres a coser mas isto representa uma penetração e como tal estão a pensar em sexo-- e acrescenta sons similarmente concretos que correm de uma máquina de costura ponto por ponto as divagações negras dos três marginais; para se saciarem de uma eterna loucura cantam algo parecido com um coro de eunucos gordos e defeituosos pelas ruas da minha cidade esse aglomerado de betão que se dissipa no nevoeiro e ganha um contorno de fantasma adormecido das suas portas e janelas somente o silêncio tenebroso e nem as garagens mugem como carros e motas desgovernadas oiço um piano de cauda de leopardo a tocar nas teclas subtilmente a emoldurar a noite mergulhada no abismo de um monocromatismo branco do qual estou proibido de fugir por ter uma pulseira electrónica bilhete do festival numa prisão sobrelotada onde cantavam os papagaios do costume a dissertarem sobre um universo enervantemente novelístico como se fossem leis do espírito inverto o painel de autores desacreditados por serem vítimas de uma guerra entre os cidadãos vermelhos contra os descoloridos que lutam contra a cultura que oblitera uma língua para estofar o português jogam pelo seguro para instituir uma nova ordem oral mas secretamente castrada dos seus impulsos mais primários onde dominavam o p e o c e o 1 mais menos 3 numa perpétua hostilização da cultura simplificando a sua natureza a uma outra sem futuro revejo os satélites que emitem para o interior do planeta mensagens de amor e de maldizer tento a combustão do meu corpo disperso em diferentes momentos da minha vida passada mas ao realizar a junção das peças falta-me o motor a gasóleo peço a um estranho electricidade e esta reaviva-me para lá desta corporalidade desconexa relanço as estribeiras sobre o solo aguado que raramente solidifica e me erige tal figura monstruosamente bela que dá a sua mão de chave de fendas a uma divagação efectivamente tão bela quanto longínqua de tão próxima.

Economias Alternativas—Troca de Roupa (Seam Beat Experience com Agente Costura e os seus Dedais Cósmicos), 11 de Julho, Museu Machado Castro, Coimbra.