As sombras jamais vitoriosas ocultas no interior de túneis de vidro fosco sossegam perante a fluidez de luz que lhes percorre os contornos negros e cinza e parece que tremem ao serem consumidas pelo crescer do dia e temem que isso suceda mas tal é inevitável porque falta-lhes o corpo para lhes dar vida e nessa perspectiva a tragédia dá-se e os seus contornos estreitam-se lentamente até desaparecerem e quando a madrugada se emancipar da noite o processo repete-se e a dor ressurge num fluxo que se reduz ao poder cego do Sol porém nos dias cinzentos são as sombras que dominam o dia e a noite ao perturbarem os sonhos dos que ainda sonham mesmo que pareça mais uma banalidade imposta pela vida e nesses dias de Outono reina a incerteza sobre quem sobraçara a um pesadelo que de repetido se confunde com a rotina de serpente no advir de outra com sete cabeças que é somente uma múltipla e eloquente vivificação de um coro polifónico e por isso hipnótico que se arrasta como se fosse uma memória que ruidosamente se prende às torrentes que ressoam sob a terra marcada por cal que desenha uma silhueta de contornos helénicos em que sobressai a cabeça de uma mulher de tronco inclinado e sem braços de cabelos encaracolados marmóreos que se aparenta a um principio de beleza proponho que se materialize em sombra e se transfira para um outro tempo em que o que decorre é da ordem do abstracto e nesse espaço que se lhe faça justiça e se erga a estátua da liberdade da beleza e se subjugue o ogre à sua condição de artigo decorativo utilitário e se institua uma outra desordem com um lastro de destruição; faltam umas horas para o início do concerto dos GNR na Gafanha da Nazaré localizado paralelo a um canal onde está atracado um navio que pode ser visitado mas o que de facto é perturbante é a chuva que não cessa assim como o vento frio e já no palco encontro dois roadies que ficaram a assegurar o backline dos GNR que se encontrava coberto por diversas telas e a conversa versa sobre aspectos diversos sobre a vida na estrada e o relacionamento com as estrelas pop nacionais e internacionais e a chuva e o vento continuam a bombear sobre o palco e instala-se a eventualidade do concerto ser cancelado e às dez da noite ninguém explica aos poucos presentes se haverá ou não concerto e esta resposta somente é dada às onze quando a protecção civil dá o aval a que se realize o show mesmo que pareça que está a decorrer uma tempestade e os GNR estão no seu camarim a estudar os riscos inerentes a tocar sob tal temporal e por fim sobem ao palco sem a intro habitual “Decapitango” e ejectam a dançante “Impressões Digitais” prosseguem sem que lhes seja adversa a chuva que afasta algumas pessoas que desaparecem e o que já era exíguo ganhou uma dimensão de pequenez de guarda-chuva abertos e há quem grite durante as canções “Rui Reininho és o maior”que são executadas segundo numa perspectiva que sublinha o rock em detrimento da pop que também se vê contaminada pelo rock e é nesta deriva que os GNR são divinos porque transformam algo que não lhes é tão familiar (o rock) em algo graciosamente urgente e por vezes de uma beleza atroz e nessa violência por vezes soft outras hard que se registam os clássicos como “Dama ou Tigre” ou “Mosquito” que é tempero dos trópicos e que encerra o concerto isto apesar dos inúmeros apelos para que voltem e o encerrem com “Dunas”; que reconstrua uma outra realidade constituída por sombras imunes à vida e nessa escuridão irromperiam verbos estranhos pois sobrepostos semelhantes a uma tempestade telúrica que transporia o pulsar de uma natureza enraivecida num gutural e distorcido grito seguido por um intervalo fúnebre similar ao negativo de uma fotografia em que se identificaria a turbulência das sombras e num segundo alguém sufraga que tudo e todos sejam inertes e após esta sonolência a matéria orgânica irrompe da prisão como algo imprecisamente sedutor que se instala sobre o firmamento tornando-o irregular se fossem ameias de um castelo encantado estariam personagens infantis manipuladas por adultos com vozes horripilantes numa representação de amor de perdição com final feliz para sossegar as crianças sobre a condição estranha dos sentimentos e a luz no exterior é tão cinzenta que cobre a paisagem campestre com um bucolismo quase romântico onde imperam sombras que se assemelham a árvores que se insurgem contra as mutações ditatoriais da temperatura ambiente e à sua volta decorre a marcha dos que lutam por uma outra guerra que não a que irão enfrentar a que seja por uma paz que se assemelhe a um silêncio do qual irromperá um outro Mundo.
GNR, 7 de Agosto, Festival do Bacalhau, Gafanha da Nazaré, Ílhavo.
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