Não há luz por aqui parece que a memória é uma pauta composta pelo Nino Rota para um filme negro e as suas notas correspondem a uma melodia voluptuosamente orquestrada dando destaque aos violinos que correspondem a um coro da época clássica e num palco com uma cenografia naturalista dança um casal que se movimenta tão lentamente quanto levemente parece que desaparecem e a melodia versa um andamento fúnebre que não sossega sobre o futuro dos bailarinos talvez sejam vitimas da sua ganância ou de outra incongruência qualquer e a fita rebobina sem que alguém a faça parar e os números sucedem-se numa ordem decrescente como se fossem os últimos segundos de vida do casal e por fim alguém carrega no Stop e substitui a bobine por uma outra e ouve-se “acção” mas o que sucede é um ecrã negro e uma voz reclama para si a narrativa que versa sobre algo estranho de tão distante e essa voz mistura-se com outras que encadeadas divagam sobre algo inexacto e essa continuidade é de um tédio preocupante que prossegue e por vezes é perceptível o que falam mas não as palavras essas que conduzem o espectador pelos diferentes estados de espírito das personagens a máquina é indiferente a essa monotonia e sucede que por fim surgem os contornos das personagens flutuantes a beijarem-se poeticamente numa lentidão de câmara lenta que lhes oferece um poder sedutor e que se esfuma assim que olham um para o outro e ouvem violinos em pizzicato que prolongam a cena para além de qualquer reconhecimento do que está verdadeiramente a suceder e este enigma equipara-se ao silêncio de que é composto a inexistência de verbos ou adjectivos somente um olhar entre eles e se despegam das sombras azuis e vestem o corpo de humanos de idades diferentes; She Wants Revenge encontram-se no palco do Teatro José Lúcio a convite da Fade In que promove há uma década o único festival gótico do país o ENTREMURALHAS é hoje EXTRAMURALHAS devido às obras de requalificação do castelo de Leiria mas não se confinam a esse género obscuro como é exemplo o convite endereçado aos She Wants Revenge que é uma dupla de músicos que encabeçam este colectivo que se fazem acompanhar por um baterista e baixista e a primeira música é uma continua expansão de acordes monótonos que perturbam e gradualmente se instituem como um denominador comum que é simultaneamente belo e negro e os primeiros quarenta e cinco minutos do concerto encontram o público maioritariamente sentado aparentemente hipnotizado perante a incidência e a cadência negra das canções e é convidado a que se levante e dance mas esta deve ser lenta e que esteja tolhida por um prazer umas vezes sedutoramente e outras vertiginosamente acutilante pois o ritmo é de uma verve contagiosa da qual ressaem melodias tolhidas com uma melancolia poeticamente negra que encontram no cantor um eloquente narrador ou pregador e é umas vezes o primeiro outras o segundo mas há o caso em que fazem parte de uma canção e a mensagem é de uma violência assertiva que se ergue contra qualquer recalcamento e liberta a consciência de outros atritos de similar índole as pessoas dançam e aplaudem e os She Wants Revenge que decidem porque lhes agrada esta festividade calorosa em prolongar o concerto por mais três canções e o encerram de forma épica; mas de similar sensibilidade observam uma tela abstracta em que a tinta é sobreposta a outras e diversas cores que se subjugam a uma monocromia em que impera o branco e o cinzento e sem que haja a percepção qual destes é que lhe oferece a luz símbolo do amor é-lhes fascinante este retrato que lhes oferece um destino que somente essa luz tem o poder de constituir e de realizar e se é um sonho ou algo que faça sentido entre as paredes que os cercam como se fossem muros que se erguem ilusoriamente contra os dias cinza de Inverno ou os dilúvios da Primavera e rasgam a tela e abandonam a ficção para recriarem uma outra em que domina uma rotina controlada pelo fuso horário local e desligam a projecção e na sala escura tentam encontrar algo que os retire dessa condição de cegueira momentânea e a luz branca de sala de cinema torna-os em figuras que dão continuidade ao tempo narrativo em que se consubstanciam em matéria similar ao tempo em que eram personagens de uma imagem que se flutuava porque a vibração destas é mais forte do que um batimento cardíaco que se alimenta dos sentimentos positivos para florescer um jardim ou uma ilha rodeada de muralhas de pedra calcária para sofrer com o desgaste das intempéries e um dia o dia da sua derrocada será hoje.
She Wants Revenge, 31 de Agosto, EXTRAMURALHAS, Leiria.
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