sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Beyond Good and Evil

Decorre nesta noite de Novembro uma tempestade que gradualmente se abate sobre a cidade do Porto salpicando-a com um pontilhismo luminoso de tão obscuro que a envelhece em cada segundo que passa e em cada passo que dou e friamente meto essa fotografia no bolso do casaco preto de cabedal e procuro o bilhete para ver no Hard Club os Primal Scream mas previamente há actuação dos portuenses Fugly que derramam a sua verve punk mas assediada constantemente por um trash vibrante que lhes confere uma densidade predominantemente agressiva e as inúmeras variações rítmicas incute-lhes uma eloquência atroz e pena que haja tão escasso público e que isto se reflicta aquando da entrada em palco dos Primal Scream que se atêm ao predomínio de programações e samplers que são rasgadas ou reconstruídas pela guitarra eléctrica do Andrew Innes mas a gramática que predomina é a de um ritmo atroz que provoca uma perturbante claustrofobia que paradoxalmente é tão apelativa quanto dançante e quem dança no palco é o Bobby Gillespie que enverga um fato cor-de-rosa desenhado pelo Alexander McQueen que esteticamente se encontra inscrito entre a década de sessenta e setenta do século XX e esta ambiguidade oferece-lhe um simbolismo de figura enquadrada no tempo e no espaço que o rodeia com figuras fotografadas pelo Lewis Carroll do qual se tal fosse possível o Bobby Gillespie teria sido o modelo humano para a Lagarta azul no “Alice No País das Maravilhas” e os Primal Scream ao se munirem do fluxo absurdo do livro deflagram canções em que impera o psicadelismo mas um psicadelismo sustentado na repetição numa métrica estruturada para violentar o consciente a isto associam os strobs que aprofundam a violência do ritmo num estilhaçar e ou numa decomposição do kraut rock e esta delapidação é algo digno do sagrado de tão corrosivo e isso poderia decorrer ad eternum sem que haja qualquer atenção para as paisagens circundantes que formam um vórtice e desaparecem e esse quadro volátil é o detonador de um outro conjunto de imagens canibais e vice-versa e etc. e após este derrame de ácido musical sobre os cérebros até aí virgens de tal delirante droga o Bobby Gillespie anuncia que agora vão “slow down” e inscrevem um blues rock mergulhado numa densidade tão decadente quanto austera em que as cores são negras que gradualmente se transforma num rock violento viril e tempestivo ouvem-se as palmas do público a acompanharem a corresponderem ao Xamã vestido de cor-de-rosa que sente a dor da despedida de um amor que julgava eterno “baby stay with me”, “stay with me”, “stay with me”, e prosseguem para o recrudescer de um rock com reminiscências às décadas de sessenta e setenta (século XX) que oferece às canções um cariz de festividade incomensurável de tão urgente e que não se extingue no rock antes reafirmam-no como o evocar de uma memória épica que têm o talento de transcender e nessa medida rejuvenescem-no para algo que apela a que se dance sem qualquer restrição e se alcance uma liberdade hedonista que apela a que se limitem ou se anulem inúmeros preconceitos e se nutram desta energia que percorre o concerto transversalmente numa estrutura musical e narrativa em que a voz do Bobby Gillesppie desempenha um papel de cantor que tem uma dicção assertiva de tão presente quanto o seu posto e este centro é o catalisador da indução a uma hipnose que confere a quem está presente a estar ausente mas paradoxalmente a bater palmas à performance apoteótica dos Primal Scream.

Primal Scream + Fugly, 6 de Novembro, Hard Club, Porto.