Não associo o seu rosto
à fotografia de quando tinha quinze anos olho para ele e encontro um rosto
meditativo de quem está a planificar ou a sintetizar um problema a sua ausência
era tão crónica quanto o era o da minha mãe e passeava por entre braços estrangeiros
ou eram de estrangeiras cada uma com seu sotaque de uma cidade brasileira não
me lembro de nenhuma delas tenho uma vaga ideia que eram de plástico ou pelo
menos era assim que as sentia e tinham um odor estranho como que agridoce que
ainda hoje tenho como algo amargo porque simbolizava que estava sem a minha mãe
ou pai não sabia onde me encontrava se dentro ou fora de uma caverna húmida com
desenhos ancestrais riscados nas pedras de argila tal como os que desenhava ou
pelo menos parecidos creio eu ou talvez não eram meras deambulações de um estímulo
criativo que me libertava da presença das amas havia uma que parecia que fazia
de minha mãe e outra de outra mãe e ainda uma outra que aparecia
recorrentemente para conversar sobre as suas dores diárias que eram de origem
da alma ou pelo menos era a isso que associava às suas lamentações; noite de
festa em Coimbra no Salão Brazil o último reduto de resistência à onda da
pandemia que encerrou inúmeros clubs em diversas cidades do país e que se
mantêm encerrados as bandas deixaram de ter um palco à medida da sua
popularidade para muitos seria a emancipação da garagem para outros mais uma
visita para cantar e tocar e serem presencialmente ouvidos algo que hoje é um
luxo pois agravado com as emissões online que são por si só impessoais e
formatadas a um emissor pobre que condiciona a audição do ouvinte e essa aversão
entre outras obriga-me a estar sentado à espera da Raquel Ralha e do Pedro
Renato uma dupla originária dos míticos Belle Chasse Hotel e tal se prende com
a apresentação ao vivo do álbum editado recentemente “The Devil’s Choice,
Vol.II / Heavenly Tales” se o primeiro capítulo desta dupla tinha como premissa
reescrever temas de outros músicos/bandas em que dominavam cores garridas de
tão agressivas que reinscreviam um outro negrume que era somente desenhado nos
originais o concerto encontra a cantora com asas brancas mas de vestido negro
acompanhada por Pedro Renato na guitarra e nos teclados e as canções dos Love
and Rockets ou do Barry Adamson ou dos Pixies têm como centro nevrálgico realçar
a melodia numa cadência que evoca simultaneamente uma efemeridade fúnebre em que
reverberam pormenores narrativos que primam por uma eloquência dramática que
apela a imagens idílicas que são de um arrasto sentimental que recorda estados
de espírito dignos de uma criança ou laivos de demência por parte de um idoso e
nessa transacção há um baloiçar de sonho derrotado como o que se assemelha a “Heaven”
dos Psychedelic Furs; apesar de não perceber o que ou porquê ou por quem chorava
era uma lamúria recorrente que se aparentava com algo tão distante do qual
somente era capaz de ouvir o eco das suas palavras tolhidas de dor perguntava à
minha mãe porque ela chorava e ela dizia que fazia parte dos pobres para se
aliviarem de tal enguiço sentir-se-iam felizes não compreendi o que dizia
enquanto contemplava com uma divagação filosófica o jornal e eu abandonava-me a
jogar com uns mini carrinhos e afastava-me da sua presença e no meu quarto
continuava a acelerar e sentia o cheiro do seu cigarro a ser absorvido
parcialmente pela janela da nossa casa de onde se vê o horizonte e se me
assemelho a uma criança é somente porque esse era o meu estádio de
desenvolvimento mas a ausência de um irmão ou de um outro ente querido da minha
idade teriam feito nascer um amor que desconheço como é o fraternal posso
alistar-me num lar e encontrar o irmão que tanto desejei desde que me lembro
que o espero para lhe dar a minha palavra que lutarei por nós tal como hoje como
sempre.
Raquel Ralha & Pedro Renato, “The Devil’s Choice, Vol.II / Heavenly Tales”, 17 de Outubro, Salão Brazil, Coimbra.