sábado, 10 de julho de 2021

The Anxiety of Influence

Há uma fuga de figuras que se perpassam em sombra para o interior de um poço de águas lamacentas onde bóiam as cinzas as minhas cinzas ou as de um outro corpo que se fez noite oiço o grito dos inválidos e dos que não se conseguem fazer ouvir não porque sejam mudos mas porque lhes falha o dom da comunicação que opera silenciosamente entre as sombras que viajam para mim e para ti somos invisíveis e o outro eu indivisível esquarteja-me peço-te que me retalhes em diversos para que possa dessa forma ser alguém mas como sou um duvido que alguém confie em mim dou-te os meus restos nas mãos iguais às da minha mãe e amante carnívoras flores que ela beijava para que lhe dessem o amor que o senhor meu pai era incapaz de lhe dar por mera prisão de ego não vá o amor feri-lo e ele desaparecer para sempre como sucedeu com os seus antepassados rogo que as minhas mãos se mantenham com a mesma finura que as da minha mãe estas poderiam tocar piano e até dançar ballet sobre a mesa de passar à ferro o amor é uma âncora que me impede de mutila-as como o fiz no passado para me libertar do poder maternal e aceder ao paternal perfil de alegria e felicidade e imiscuído numa sociedade machista na qual sou apenas uma flor que arde numa caverna submarina se Deus fosse realmente real eu estaria num outro ponto no espaço como uma estrela ou um planeta que tem tanta vida quanto as sombras que me rodeiam e sussurram-me “que fazemos aqui se não estás connosco estas algures perdido com a tua mão no núcleo uterino de onde se prepara a bomba ejectar-te” ; (Mancines corresponde a um colectivo que se apresenta maioritariamente vestido de branco excepto Raquel Ralha que é a única mulher em palco); o concerto no Teatro Académico Gil Vicente marca o lançamento do segundo LP designado de “II”, a primeira meia hora é dominada oralmente pelo Toni Fortuna--  que tenta cantar como um crooner até porque as canções remetem para os filmes que decorreram na década de 50/60 do século passado-- mas infelizmente não logra aproximar-se desse registo que tem que ter algo de encantatório assim como se fosse um anúncio publicitário do american way of life em que tudo o que é passível de ser consumido produz felicidade e essa tem que cativar o ouvinte e leva-lo a crer que o que canta o Toni Fortuna está mesmo a senti-lo e por essa via está a partilhar isso com o público; a segunda parte --divido desta forma porque há mudanças radicais-- a primeira é a Raquel Ralha assumir o papel de cantora e parece que surge uma outra banda pop que abandona o dogma cinéfilo e se atém ao pop/rock de diversas proveniências, mas de preferência mais negra e substancialmente subtil, erigindo-as a uma extravagância que refaz o passado e lhe confere um outro alento assumidamente mais dramático; peço para que se calem para que me deixem em paz que sou uma simples e frágil flor um fogacho uma empresa vã deliro com a hipótese de que nunca tenha tido mãe e que estas mãos mecânicas e frias são o resultado de um encontro entre cometas inexistentes fuga doce fuga para lá do horizonte de onde caem as sombras que me amam ou amaram porque nunca fui uma delas tenho a beleza de um cancro e a altivez de uma avestruz tonta de tanta droga “lava as mãos e os pés” entro de novo no ciclo de inúmeras vozes que se rodopiam para lá de qualquer movimento que possa ser fotografado para que a sua existência seja comprovada há focos e soldadura sobre a liberdade e a torne numa prisão onde os hereges que como eu se deleitam num canibalismo instruído pela paternidade a destruir tudo que é concebido de belo por ti “meu susto criativo frágil loucura” que seja assim que me ponho de joelhos e rezo cristalizado por um Deus melhor que faça do inconcebível o seu oposto e que não seja uma fonte de influência vingativa de tão pobre quanto vale este ponto onde se reduzem os escombros a pó as auroras ou o arco de triunfo sistemas que simbolizam o que de trágico ocorreu sem que haja tempo para reflectir onde estão as minhas sombras queridas belas amáveis luminosas subterrâneas principescas sombras onde “estou meu amor senão no tal poço” ou em todos os encontros entre os outros amantes no pôr-do-sol lástima estarei aquém ou a refutar um outro talento sobre o vínculo que me une à vida é um mero cordão umbilical um sofrimento que somente a mortalidade é capaz de recordar que este calabouço de ossos e de carne é fonte vindoura de uma estirpe que se quer fatalmente transformada em pó nesse pó que cabe numas mãos de flor canibal da minha mãe é por ti que sonho um dia abrigar-me em ti mas primeiro tenho que descobrir o caminho que me leva até à tua presença porque se fores luz e poesia serás mãe do meu pai esse que dá naturalidade à natureza e lhe confere o papel regenerativo que um dia talvez dia serei como eu tu.  

Mancines, “II”, 09 de Julho, Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.