Há uma fuga de figuras
que se perpassam em sombra para o interior de um poço de águas lamacentas onde
bóiam as cinzas as minhas cinzas ou as de um outro corpo que se fez noite oiço
o grito dos inválidos e dos que não se conseguem fazer ouvir não porque sejam
mudos mas porque lhes falha o dom da comunicação que opera silenciosamente
entre as sombras que viajam para mim e para ti somos invisíveis e o outro eu indivisível
esquarteja-me peço-te que me retalhes em diversos para que possa dessa forma ser
alguém mas como sou um duvido que alguém confie em mim dou-te os meus restos
nas mãos iguais às da minha mãe e amante carnívoras flores que ela beijava para
que lhe dessem o amor que o senhor meu pai era incapaz de lhe dar por mera
prisão de ego não vá o amor feri-lo e ele desaparecer para sempre como sucedeu
com os seus antepassados rogo que as minhas mãos se mantenham com a mesma finura
que as da minha mãe estas poderiam tocar piano e até dançar ballet sobre a mesa
de passar à ferro o amor é uma âncora que me impede de mutila-as como o fiz no
passado para me libertar do poder maternal e aceder ao paternal perfil de
alegria e felicidade e imiscuído numa sociedade machista na qual sou apenas uma
flor que arde numa caverna submarina se Deus fosse realmente real eu estaria
num outro ponto no espaço como uma estrela ou um planeta que tem tanta vida
quanto as sombras que me rodeiam e sussurram-me “que fazemos aqui se não estás
connosco estas algures perdido com a tua mão no núcleo uterino de onde se
prepara a bomba ejectar-te” ; (Mancines corresponde a um colectivo que se
apresenta maioritariamente vestido de branco excepto Raquel Ralha que é a única
mulher em palco); o concerto no Teatro Académico Gil Vicente marca o lançamento
do segundo LP designado de “II”, a primeira meia hora é dominada oralmente pelo
Toni Fortuna-- que tenta cantar como um
crooner até porque as canções remetem para os filmes que decorreram na década
de 50/60 do século passado-- mas infelizmente não logra aproximar-se desse
registo que tem que ter algo de encantatório assim como se fosse um anúncio
publicitário do american way of life em que tudo o que é passível de ser
consumido produz felicidade e essa tem que cativar o ouvinte e leva-lo a crer
que o que canta o Toni Fortuna está mesmo a senti-lo e por essa via está a
partilhar isso com o público; a segunda parte --divido desta forma porque há
mudanças radicais-- a primeira é a Raquel Ralha assumir o papel de cantora e
parece que surge uma outra banda pop que abandona o dogma cinéfilo e se atém ao
pop/rock de diversas proveniências, mas de preferência mais negra e
substancialmente subtil, erigindo-as a uma extravagância que refaz o passado e
lhe confere um outro alento assumidamente mais dramático; peço para que se
calem para que me deixem em paz que sou uma simples e frágil flor um fogacho
uma empresa vã deliro com a hipótese de que nunca tenha tido mãe e que estas
mãos mecânicas e frias são o resultado de um encontro entre cometas
inexistentes fuga doce fuga para lá do horizonte de onde caem as sombras que me
amam ou amaram porque nunca fui uma delas tenho a beleza de um cancro e a altivez
de uma avestruz tonta de tanta droga “lava as mãos e os pés” entro de novo no
ciclo de inúmeras vozes que se rodopiam para lá de qualquer movimento que possa
ser fotografado para que a sua existência seja comprovada há focos e soldadura
sobre a liberdade e a torne numa prisão onde os hereges que como eu se deleitam
num canibalismo instruído pela paternidade a destruir tudo que é concebido de
belo por ti “meu susto criativo frágil loucura” que seja assim que me ponho de
joelhos e rezo cristalizado por um Deus melhor que faça do inconcebível o seu
oposto e que não seja uma fonte de influência vingativa de tão pobre quanto
vale este ponto onde se reduzem os escombros a pó as auroras ou o arco de
triunfo sistemas que simbolizam o que de trágico ocorreu sem que haja tempo
para reflectir onde estão as minhas sombras queridas belas amáveis luminosas
subterrâneas principescas sombras onde “estou meu amor senão no tal poço” ou em
todos os encontros entre os outros amantes no pôr-do-sol lástima estarei aquém
ou a refutar um outro talento sobre o vínculo que me une à vida é um mero
cordão umbilical um sofrimento que somente a mortalidade é capaz de recordar
que este calabouço de ossos e de carne é fonte vindoura de uma estirpe que se
quer fatalmente transformada em pó nesse pó que cabe numas mãos de flor canibal
da minha mãe é por ti que sonho um dia abrigar-me em ti mas primeiro tenho que
descobrir o caminho que me leva até à tua presença porque se fores luz e poesia
serás mãe do meu pai esse que dá naturalidade à natureza e lhe confere o papel
regenerativo que um dia talvez dia serei como eu tu.
Mancines, “II”, 09 de Julho, Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.