domingo, 14 de janeiro de 2007
K4
Os sintomas da minha vida estão inscritos em cada uma das minhas obras, foi com elas que perdi a pureza. Enalteço as cores dos corpos que são dedilhados nas cordas de um violoncelo semeado com sémen da minha palete. Estou distante da esquizofrenia do Picasso mas próximo dos traços físicos do Modigliani, com eles reduzo a realidade a uma escravidão geométrica que se movimenta por entre as minhas pinceladas. Recordo Paris e divido a solidão com a imaginação: retalho a cabeça de uma mulher e desmancho a minha virgindade. O rasto rasga os ventres das telas com espelhos de um bordel, queimo os espíritos beatos com cores azuis de Paris, onde espreitava o peito das Madames. Ensaio o ímpeto do meu braço fatigado das noites a pintar, abro as janelas azuis e vejo um céu de mofo e a inconstante tosse ressurge e impede-me de suster a mão firme, recorro à concentração para resolver a minha deficiência. Lavo as mãos num alguidar de sangue que escondo no sótão da nossa casa de Manhufe, retiro das unhas os restos de tinta, cuspo. Tropeço no livro dos desenhos de tinta-da-china à lupa das noites em que a Lucie adormecia sozinha. O remorso. Na tela resolvo o enigma: Aqui estou perante vós, testemunhas da minha existência, a transmutar-me em tempo.
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