quarta-feira, 29 de outubro de 2008
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Spiders From Mars
As sirenes da patrulha dos militares, ouvem-se, assim como as pás de um helicóptero que está suspenso sobre o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz. Ninguém sai dos seus lugares estofados de tecido castanho, a temperatura é elevada, e sobe com o pano iluminado de azul, e ao abrir-se, descobrimos Ney Matogrosso sentado numa chaise longue, vestido com uma malha vidrada e uma touca com plumas em cada orelha. Abre a sua boca e a voz límpida e incisiva de um guerrilheiro que tem uma “metralhadora cheia de carga”, “eu sou mais um cara”, “o tempo não pára!”, “assim se ganha mais dinheiroooo!”, a raiva da guitarra eléctrica sublinha o dramatismo da canção. Agradece as palmas, “obrigado, boa noite”. O slow é marcado pelo piano, que dá densidade ao, “sou um homem, eu sou um bicho, sou mulher, sou cadeira e a mesa neste cabaret, sou o seu lugar no Mundo!”, a guitarra corta transversalmente a melodia, “sou o certo, sou o errado, o que divide”, esvoaça, coloca-se de joelhos, “na cama”, saltita, vira costas levanta os braços e convida-nos para a “cama”. O tango, tanguei-a, tange-se, toca-nos, dança, dança, “ser feliz não é uma questão de talento”, “o vento leva a gente”, e Ney Matogrosso baila às notas da guitarra acústica, e pára, e tudo converge à sua volta. No quarto tema, o caminho percorrido é a soul da década de setenta, e o drama ressurge “para poder, para poder, comer, dormir”, é o amor que não preenche “a minha tarde vazia”. Tira a touca, veste colares, põe a touca, coloca-se sobre uma pequena rampa, que se encontra entre os percussionistas e o guitarrista, e o teclista e o baixo, excelentes, nota acrescida para o guitarrista. “Onde está você meu amor? Eu preciso de um pouco de calor”, há desespero, medo, “onde está você meu amor?”, a tragédia, “meu carro que não quer andar, essa noite que não quer terminar”, angústia, narrada no singular. A tepidez surge numa interpretação sóbria, aguda, e chega a arriscar “uma fuga contra o tempo”, que “não tem fimmm”, “onde está você? Meu amoooor”. “Eu preciso um pouco de calor, de CAaaaloOOOrRR!”. Abana as ancas, levanta os braços, despe-se ao ritmo das palmas, olha o público fixamente, para ter a certeza que o estão a despir. Vira costas e o teclado leva-nos para o Egipto de mulheres exóticas com cabeça de esfinge, hipnotismo-sensual, é o delírio, uma intoxicação colectiva, “o tempo que antecipa o fim”. O Blues ensimesma-se e Ney deita-se na chaise, levanta a perna da esquerda, as duas, e exibe-as como se fossem de uma anúncio da Coca-Cola para animar as tropas americanas que chacinaram o Vietname e o Iraque, excitante, afrodisíaco? Abre as pernas e canta, “que venha cedo e que abra a porta devagar, que abra a porta devagar, devagar”, levanta-se, “me aperta furiosamente”, filtra com o baixista, “prometo te deixar”, de joelhos na boca de cena. Este pássaro exótico por ser pessoa, viaja através de África, não procura nada, apenas uma batida tribal, com as precursões a marcarem o ritmo e Ney delira, “o que eu quero é ser velho”. A rumba em castelhano “estoy usando mi condena”, “tu sonrrisa como bandera”, “la eternida de las peleas”, os coros: “lo que será, será, será”, o assobio sobre o ritmo, surgem vozes da selva amazónica, despe o tronco e… Regressa ao português e a história é a de um cavaleiro, “ele é filho do vento, é filho do mato”. Solo hard-rock, abre a canção, cheira a bar de alterne, “a noite nunca tem fim”, é a constatação, a reprovação: “porque é que a gente é assim?”, aventura-se por entre o público a esvoaçar, a rasgar a sala repleta de casais conservadores. “Você tem tudo para me conquistar, você tem exactamente um segundo para me aprender a amar, você tem a vida toda para me devorar”, visceral, perturbante. Guitarra acústica, pandeireta, teclado para adocicar, “existem coisas na vida, que até Deus duvida, tem gente que é só sucesso, tem gente prevenida, tem gente já falecida”, os músicos encontram-se concentrados sobre a chaise, o assobio do guitarrista finaliza-a, e o seu rosto mulato é beijado pela ave-cascavel.Regressam os helicópteros a perseguir um preto que cometeu um crime por droga, por fome, por ódio, inveja, tristeza. As sirenes acompanham o foco que o procuram, no escuro do palco. A liberdade regressa neste verso “aqui somos mestiços, mulatos”, diálogo com a guitarra, “aqui somos inclassificáveis, inclassificáveis, inclassificáveis”. O rock é imposto violentamente a contrastar com a voz límpida e aguda de Ney, uma cruz ressalta do cenário.“Não há sol, há sóis”, em rap. A rumba destila dramaticamente, “veja bem amor, onde está você? Somos no papel, mas não no viver, nunca te vou esquecer amorr…”. A loucura é imposta através do disco-sound, do Studio 54, de Nova Iorque, “se joga, se droga, e eu te dou a minha mão”, as luzes espalham-se pelos espectadores, a cobra-pássaro dança, a simbiose surreal da beleza, de Klimt ou Oscar Nimeyer.“Não temos tempo de perder a morte”, Matogrosso, desaparece para os camarins passando por uma cortina que serve de adereço erótico.“Ficar sem a proa, sorrir para qualquer pessoa, eu não quero tudo de uma vez”, e o falseto: “eu hoje, eu sou quero, que o dia termine”, “eu só tenho um simples desejo, eu só quero que o dia termine bem”. A encerrar toda esta transmutação de identidade, como se fosse um objecto lunar procriado para perturbar, com a sua voz de pássaro e cascavel venenosa intoxica a realidade para uma dimensão longe da alienação, acutilância, a batalha em cada nota e o gesto é transgressão, o corpo sublimação, “essa é a vida que eu sempre quis.”
"Inclassificáveis", Ney Matogrosso, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, 26 de Outubro.
"Inclassificáveis", Ney Matogrosso, Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, 26 de Outubro.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
sábado, 25 de outubro de 2008
G.N.R
A cobertura é branca e é um caixão ou uma nave espacial, começa tudo mal, a cultura instalada das barracas é cerveja, bebidas coloridas, Dj com três ecrãs a ladearem-no, não há uma máquina de café. Porcos no espeto, hambúrgueres, cachorros e cachorras com o cio, cobertas por trajes pretos com capas de zorro rasgadas, como se fosse a assumpção do pecado. O vento da manhã esfuma os viciados do controle, o cheiro a carne assada humana, será uma recordação, nem mais um soldado anónimo, dormirá neste caixão, sonhando arrogante com o nome da sua batalha banal. Lúcido? Rui Reininho, Toli, jorge Romão= G.N.R. “Espelho Meu” instala o alarme luminoso no palco, sonoramente sofisticado, numa cadência mais lenta que o original, com maracas artificias a marcar o ritmo, balançado, “perguntei ao yé, yé, yé, ao espelho”, as palavras saem submissas dos lábios de Rui Reininho, vestido de preto mas com camisa branca para destoar, “estás a despir-te, neste palco, pareço… ahhaha”. E surge a suples em “Popless”: “tudo o que sobe também desce”, “um peito assim também cresce”, quando se excitam à língua do Reininho e o solo da guitarra, “tudo o que sobe, desce, boca, cabeça à toa”, a deflagração da redefinição da canção pop. “Senhor, senhores meninos e meninas”, “não é por acaso que o processo Casa Pia, vai chegar ao fim, há sempre uma criança dentro de mim, ´mais vale nunca, nunca mais beber, mais vale nada, Jorge duas vezes sem tirar?´”. “Está aquecer no sexo passado”, sobressaem as teclas, e o acordeão esfolia-se devagar, “e o dia não sejas triste, a bússola não sei se existe, aponta sempre para Norte”, “mar” ecoa violentamente, “esperam um gajo parecido com elas.”. “Tenho um filho da Académica, tenho uma filha Juana, tenho um amor em Viana”, a filha, “com o Tony Carreira, foi um plágio, ´perto da esplanada de um bar, todos os bichos-do-mato, efectivamente aqui é diferente`”, “em quem pensa em casar”: num final pop-beat-blues. “Bellevue”, o baixo de Jorge Romão bombeia sangue para as veias e a voz do cantor falha, aceleram o ritmo e o acordeão é um fantasma nesta equação. “Encosto ao vidro o anel de brilhantes, é de fancaria, a fingir brilhantes, e sabem que me escondo na Bellevue”, Rui Reininho ensaia uma peça de Beckett, numa cenografia para realçar o streap-tease das Sugababes, “onde era sangue, é só distorção”, e, “rendez-vous” é ditado em falsete, “jovens vestidos de preto no desemprego”. “Bate-me o coração”, “ninguém comparece ao último estertor, experimento o colchão”. Jorge Romão toca as notas míticas de “Hardcore 1º Escalão” o hino à prostituição na América latina: “Chica?”, “she sucks? Que maravilha!”, e Reininho dá tiros com os dedos para o ar, aponta à cabeça e dispara, “lá, lá, lá”, “She does it, que rico!”. “Viagem para todos os caloiros: Tirana”, as luzes azuis inundam as paredes brancas. “Inventar o Jorge, divertido e letal” com efeitos electrónicos a abrir diferentes perspectivas à canção, o funeral da “Dama ou Tigre”, “por detrás de cada porta há um só destino.”. Com uma caneca de chá na mão suspira, “o destino é vago”, “é Dama ou Tigre?", solo da guitarra blues insidioso a pairar sobre os outros instrumentos. Os efeitos arabescos do teclado, emprestam a “Dama ou Tigre”, uma sublime justaposição comparativamente com a gramática existente no original, a versão que estão a executar na Latada, Coimbra, é mais cinética. “Asas”, a bateria marca o ritmo isoladamente, falha do baixo, que “ninguém, ninguém viu, viu.”. “É Sexta-feira em Coimbra”, “era eu e o Jorge Palma, no bar”, “e falta a tua confissão”, distorção, blues-soul angular. Revisão de “Vídeo Maria.”. A crueldade de, “directa sim… eu, declaro morte ao Sol, oh, oh, oh”, as guitarras adensam-se gradualmente, progressiva, “as trevas vão demorar?”, vulnerável, a guitarra: "aí vem a dor", a substituir na totalidade o solo da gaita de foles, “oho!Oooh!Oooooh”. “Babes and boys, vamos prosseguir com um tema de um brasileiro que nos deve muito e se chama?” Resposta do baixista: “Carlos Queirós". E conduzem o calhambeque de Roberto Carlos, com a Juliana, e o travesti da esquina, a mascar chiclete enquanto, “bebe cerveja”, “vida tão chata”, “onda tão curta”, “moda tão fora, sai”, “que o raio a parta”, “multiplica por quatro, o rádio berra”, “com dezasseis, tem-se de uma vez, o desgosto de se vestir como os Djs.”. As “Dunas” encerram o serpentear dos G.N.R, que se apresentaram como o último legado pop, com a consciência a roçar a demência irónica, que os coroa com a icónica coroa de espinhos.
Latada, G.N.R, Santa Clara (Coimbra), 24 de Outubro.
Latada, G.N.R, Santa Clara (Coimbra), 24 de Outubro.
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