sábado, 8 de outubro de 2011

Psicanálise dos Contos de Fadas

Teatro Académico Gil Vicente, Adolfo Luxúria Canibal é o último a subir ao palco: “Boa noite Coimbra”, atrás dos músicos há uma fotografia de um urso de peluche com o rosto com uma fractura que expõe um osso podre, veste uma t-shirt com Mao Tse Tung. As luzes vermelhas iluminam: “Esta é a história de Gonçalo Capitão, maoista”, a voz do narrador é o ronronar de um lobo a estudar a sua presa, o baixo movimenta-se como uma fada negra, a impor o ténue balanço, “escabrosos carnavais”. A banda: duas guitarras, bateria e teclado, assumem-se gradualmente como cúmplices do baixo. “Misteriosos barcos de pesca”, “e as noites de lua cheia”, “roubadas, profanadas”, a guitarra de Vasco Vaz descarrega a distorção, revela-se o teclado, “Vamos em frente, olho por olho, dente por dente”, aumenta a progressão, “Ó Capitão”, “mas tudo tem um fim e o fim chegou”, mas ninguém acredita. A guitarra reduz a melodia num solo magistral, “o Capitão foi condenado”, “morte”, as notas do teclado relembram a melodia de exaltação de uma pátria invisível. O canto do Canibal pretende levar consigo as nossas almas, “ecos malditos do Capitão”, a toada: “Vamos em frente, olho por olho, dente por dente”, seguimos o homem que nos chama ratos? Seguimos? O Canibal, levanta o braço direito, deixa-o em suspenso, e deixa a mão morta pender de um lado para o outro da canção. Coro: “Vamos em frente, olho por olho, dente por dente”, solo de Vasco, cinético, a ordem: “Levanta o braço e canta sem sorrir”, levanta-o e luta pela mão morta. A bateria dá início à segunda canção dos Mão Morta, de Braga, baixo, a guitarra procria a distorção como um bem comum. “Ruínas das igrejas jezuitas”, blasfemo queimem-no na fogueira, “e segue sempre em frente”, “carruagens”, “aí”, “mete pela rua”, “aqueles redondos”, “cafezinho com esplanada”, o pormenor: “Onde servem café de saco”. O agente Canibal narra com os tomates a substituir as amígdalas: “Contorna o lago dos cisnes”, “até chegar”, “aí”, “vira à direita”; “pela rua que passa nas piscinas”, “um centro comercial”, que é o “maior da Europa”, “complexo desportivo no fim do qual encontra a maternidade”, a guitarra de Vaz é um tempero tóxico exalado por veículos bêbados de gasolina. Eco. Mão Morta pontuam-na com uma ligeira variação para resgatar à dolência venenosa: “E o sonho é deserto”, o ritmo aumenta: “O tempo não espera”, aumenta a altura, “mim”, bate o bombo. A canção ressuscita quando nos engloba na equação maldita: “Por mim, por nós, por vós”, a guitarra revela-se metaleira, voz cresce em distorção: “Por ninguém” , “por”, distorção, “infinito”, vómito. O teclado é uma harpa de brincar, baixo, bateria introduz um ritmo de fábrica onde as máquinas são de matéria humana, mecânicos dos nossos próprios corpos, Canibal num solilóquio evocando uma demência assaz peculiar, abocanha cada palavra: “Tu disseste”, “eu disse”, “o que nos vem”, “eu disse”, “falei”, “um dia fiquei sem nada”, emerge a harpa dedilhada pelo pianista esquelético: “Eu disse para que é que isso interessa?”, “tu disseste: Nada”. Mão Morta progride acompanhando a toda infantil do pianista, que introduz um sampler de uma sitar, mamada, snifada. “Procuro o sonho da vida”, a epopeia: “Escrevo paginas e páginas, depois esqueço tudo”, a mecânica da fábrica continua a produzir cadáveres coupé, a “alastrar” pela A1, “a anarquia continua no mesmo sítio, não se passa nada” , “a anarquia toma conta de ti”, “nada”, solo de cal de Vaz, sobre a progressão rítmica: “Nada”. Quinto tema: Ritmo lento, teclado insere a melodia a partir da qual a banda progride, 2x2, o pedido formal educado sofrimento: “Alguém me faça um bico”, o noise é contido, solo-Vaz, “mortos vivos”, noise, “ressequidas”, sob a carga distorcida: aumenta o ritmo: “Alguém me faça um bico”. Sexta canção: As colunas de som começam a dar de si, o pianista segura uma guitarra e junta-se às outras duas, prometem uma descarga de adrenalina, surge a primeira rajada distorcida, “ÓOOOOOOODIO” , “OOOOOOOO”, distorção, “o teu esqueleto ciumento”, “ÓOOOOOOOODIOOO”, solo da guitarra de Manuel Pedro, as guitarras impõe uma tensão contida, entre um punhal e uma floresta. “A colecção de animais embalsamados”, “eu estilo ódio”, “ÓOOOOOODIO”, olha para as suas mãos: “De bruxo” : “E a obscenidade dos seus animais embalsamados”, “estilo ÓDIO”, “ÓOODIO”, distorção rápida e acelerada, “ÓDIO”, “estilo ódio”, “OOOOOOOO”, “estilo”, “OOOOOOODIO”, “ODEIO-TE”, “sonâmbula”, “ÓDIO, OOOOOODIO”, “ODEIO-TE”, “morta nasça as paredes”, “OOOOOOOOOOOOOOOOOOOODIO”, “ÓDIO”, “ODEIO-TE”, “maldita”, a partir de “sagrada” há uma crescente progressão: “OOOOOOOOOOOOOOOOOOO”, “ESTILO ÓDIO”, o ritmo é mais curto e rápido, “ÓDIO”, a final progressão noise incidental poderia ter sido épica: “ÓDIO”. “Boa noite Coimbra, mais uma vez. Gosto de pessoas bem comportadas. Tenho horror a pessoas mal comportadas. Demos uma vista de olhos por alguns temas da nossa história”. A massa sonora das guitarras a debitarem em paralelo transportam a melodia para as cinzas dos mortos que repousam onde as fadas são anjos malditos, “prostituem”, instala-se o noise-rock, “jamais”, ele nos deixara segui-lo, “escondidos entre a massa da sala”, a voz retira os testículos das gengivas e coloca duas vaginas: “Mulher nascida dos ratos”, a munição das guitarras parece granadas, sobrevoam o ritmo compassado de marcha militar contra os portugueses. Voz de Canibal: “Visitas-me AARRRGG”, progressão, “mulheres que eles amaram”, Vaz-solo segura toda a lógica discursiva num punhado de notas, “sempre caídos”, “os denominar”, “Aí, escondidos”, com a Mão Morta a rejeitar o feto numa sequência sintética de tão genial. Palmas. “Sobre o próximo tema vou contar uma história. É um tema sobre o meio das artes plásticas, que é um meio muito asséptico. Há muitos anos, ando a pensar em escrever algo sobre esse meio. Havia uma banda berlinense industrial, que tinha um tema passado numa galeria de paredes brancas, com uma gota de sangue deixada cair por uma visitante. Depois de perceber a letra da canção. Um ano ou ano e meio depois conseguimos chegar a essa ponta”. “Fazer de morto”, noise-pop, com o ritmo a pender para o lado do segundo, “escorria pela cara”, “quadros abstractos”, “a morte não é mais do que uma predisposição”, o absurdo: “Pra fazer de morto basta no chão”, o Hamond dá-lhe um súbito alento histórico, “mais tarde quando vagueamos em passeio”, “o seu corpo forma nas minhas mãos”, e mostra as garras de Canibal, para distrair: “Prá fazer de morto basta só no chão”, coro: “Meu irmão”, Canibal: “Esticas o corpo, estendes o corpo”, aumenta o ritmo, hiatus progressivo, o solo penetra-a: “AAAAAAAAAAA”. “O demorado é Vasco Vaz”, que imprime os acordes que guia a canção pop, “Só à espera de te ver”, pausa, “é mais fácil antever a chegada de um tufão”, sob esta estrofe a guitarra repete os acordes do refrão, “estival”, “amor sem arnês”, e os “novelos de paixão”. “E agora o nosso cenário, eixo Europeu, é fácil culpa-lo pela nossa situação desbragada. Chamando-lhe a divida soberana. A dívida alguma vez foi soberana? A dívida privada é soberana? Soberana? Soberana?”. A distorção é incutida como um vaso sanguíneo, mas o tempo é em contra ciclo, “pelo matagal”, “de quando em vez”, “rasgado”, as actrizes: “Feliz de janelas a iluminar prostitutas”, que vendem: “Carícias obscenas”, “peluche”, “escapada”, descarga dos Mão Morta, “cuspindo fogo”, “com as suas mãos pequenas”, noise-metal, “ouve-se a rádio a anunciar”: “Que faço eu aqui com as mãos manchadas de sangue?”, Canibal coloca as mãos à sua frente, o pingar do fluido é originário de um cadáver baptizado de Portugal. A guitarra de Vaz, impõe a distorção como centralidade, “mexer no que me dá”, “gritos”, “fustigam folhas do Outono”, Vaz-solo-progressivo, “no ar”, “esplanada”, “turma que passa”, “puberdade”, “rapariga”, “descubro Toulouse Lautrec”. “Paris”, solo-metal, “cortei-me”, “parei”, “amor eterno”. “O próximo tema chama-se ´Teoria da Conspiração`. Sabem o que é a incerteza da verdade? Da manipulação da informação governamental? Dos jornais que os vossos amigos leram? Nas redes? E sabem que tudo isso é contraditório? Já que tudo é uma teoria da conspiração”. O ritmo é de 2x2 mas os acordes reportam-na ligeiramente para o rock and billy, a guitarra de Vasco Vaz quando se aproxima dos monitores, os acordes distorcidos ouvem-se embrulhados numa frequência que os inibe de se exporem totalmente. Décimo terceiro tema: A guitarra é munida da distorção de Manuel Pedro, e dissemina-se pela “cidade”, “de fantasia”, “contra gritos”, pausa mas mantêm o feedback estático, distorção, “moderação”, “alma”, o Canibal devora o microfone, ouvem as tripas a contorcerem-se e remexerem-se: “OOOOOOOOOOOOOOOOO”, os Mão Morta respondem-lhe com uma electricidade limitada pelas colunas meramente académicas. Décimo quarto tema, as guitarras na frequência aguda, com o impulso da bateria aumentam o ritmo e a altura: “E se depois?”, “o Zequinha morrer?”, “e se depois?”, “perseguir”, “e se depois o Zequinha morrer”, solos das guitarras em paralelo evidenciam angústia, a bateria aumenta o ritmo, e passamos para o lado do speed-rock, o Canibal dança, pausa, bateria + solos agudos, crescendo: “AUAU”, “e se depois?”, coro: “E se depois?”, Canibal: “E se depois?”, “e se depois?”, “e se depois?”, “depoisdepoisdepoisdepoisdepois”. “1º de Novembro”, coro: “Lálálálálálálálálálálálálá”, punk-rock, “horizonte”, duas guitarras sustentam a distorção, “solidão, saudade”, a de Vaz introduz acordes funky, próximos de Prince. Coro: “Solidão”, Canibal: “Saudade”, coro: “Saudade”, Canibal: “Romagens”: “OOOOOOOO”, Canibal, coloca-se no lado esquerdo do palco, levanta o fio do microfone e traduz o português para árabe, entra em palco uma dançarina do ventre vestida de sedas pretas, traz o perfume dos desertos onde as miragens representam o futuro do peregrino. “Obrigado, Coimbra, parece que estão a sofrer terrivelmente com o som. Parece que o sistema não aguenta. Pediram-nos encarecidamente para deixar alguma coisa do P.A”. Bateria, rock, “para nos endividar, para esconder a pobreza real”, os bancos, “são as tetas da alienação”, solo sobre a massa sonora, 2x2, “o trabalho”, “morrer”, “e se formos a ver não têm nada a esconder”, “tenho que sobreviver”, “não se chama viver”, “ciclo infernal”, os bancos e o Estado: “São as tetas desta nossa alienação!”. O último tema segue a conduta do anterior, “E Vamos Fugir?”, Vasco Vaz é sinónimo de condução, “um labirinto”, speed-rock, “mediáticos”, a verdade: “A realidade não existe”, e a certeza de que não há escapatória para Portugal: “Tive uma ideia, vamos fugir?”, Mão Morta salienta a distorção: “A televisão transmite as ordens!”, a certeza de que Portugal é a terra do nunca: “Tive uma ideia, vamos fugir?”, “top models”, “prémio Nobel”, é o “maior dealer”, o grito: “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA”, distorção e um ritmo de metal, vil, que nos transporta para o nunca onde as formigas são as cigarras.

Pelux in Motion, Mão Morta, 6 de Outubro, Teatro Académico Gil Vicente @ Coimbra