Coliseu do Porto, o público anseia pelo início do concerto comemorativo de 30 anos repletos de bancos de ar, turbinas em flagrante delito, do Grupo Novo Rock (GNR). Sob uma estrondosa ovação, entram em palco: Tóli César Machado, Rui Reininho, Jorge Romão. Este empunha um baixo, ao qual se acresce um piano numa vertente clássica, “Alon zi”, violino, o funk do original do “Rei do Rock”, é submerso numa vertente lounge, num apartamento sob o mar, com sofás brancos e uma mesa de vidro snifada por uma loura cadavérica. “Cheira-me a fêmeas fatais”, o violino é o interlocutor do dono do apartamento. “Rei da rádio dá-me a voz”, sobressai o dedilhar de uma guitarra acústica. A sonolência é um indutor venenoso, “as cidades tão banais”, o Porto: “Fazem tripas corações”, rezar: “Indiferentes orações”, a banda aumenta uma oitava, “Rei da rádio dá-me a voz”, “pop”, “Rei do rock morreu por nós”, o cantor imita a mímica pélvis do Elvis, o teclado cita a melodia de “Efectivamente”, solo do violino, palmas, “Rei do Rock canta só para nós”, “nós”, o teclado de Tóli insurge-se e impõe uma gradual e leve progressão. “Vamos à igreja que amanhã é Domingo”, é a introdução à blasfema “Vídeo Maria”, vítima de censura por parte da Rádio Renascença, porque magoava a mãe de Deus. GNR usurparam-lhe a alma numa equação vertiginosamente pop. A versão, que estão a executar segue a linha esotérico-lounge, evidenciada pela anterior. “Entro numa igreja fria”, 2x2, com forte pendor do baixo saltitante de Jorge Romão, “sinto a língua morta o português vai morrer”, a duvida ou a questão: “Estará a meditar”, violino revela angustia, “amo-te Video Maria?”, e para arrefecer a tensão a suplica: “Atirem-me água fria!”, o sacrifício ficcionado: “Por ela desço ao inferno de Dante”, é progressivamente pontuada por uma dinâmica psicadélica, o solo Hamond, coloco-a no interior de uma igreja erigida pelos Jesuitas, o violino responde-lhe com um gemido. “AI!UI” (eco). “Atirem-me água benta”, o pecado mortal: “Por ela assalto a caixa de esmolas”, “o nome dela é Maria”, “se é virgem ou não? Depende da nossa fantasia”, mãe, “Madonna”. Rui-eco- “Ai”, público: “Ai”. Rui-eco- “ui”, público: “UI”, Rui-eco-“EI”. Palmas. “Coliseu do Porto, já temos algum público por cá”. Tóli Cesar Machado abandona o teclado e segura uma guitarra eléctrica, com ligação à pedaleira wha wha, como se fosse um sampler que sustenta os outros instrumentos. “Provavelmente o Tejo”, “sinos ao acordar”, “faro”, o violino reproduz a mecânica do ritmo como se fosse uma mosca de Tzé Tzé, produz cogumelos, “enferrujar” , surge uma progressão circular crescente: “Veias estalando”, “ricas de carbono”, “vejo o rio”, “paro de martelar”, deixa de imaginar “as naves que eu construo não são feitas para navegar”, “as vagas em que elas vogam”, as ondas: “Vão e vêem-se se se voltam devagar”, a banda aumenta a altura, Rui Reininho salta, faz estalar castanholas, o solo do violino aproxima-se do flamenco. O público responde com palmas ao ritmo da bateria. Pausa. “Aguentam a violência de um beijo”, têm a garantia: “As naves que eu construo”. Jorge Romão: “Lalalala”, “elas vogam e fundem-se com o mar”, “devagar”. “Obrigado ladies and gents, aqui no silêncio não há crise. Mais uma música triste sobre Portugal”. As duas guitarras produzem acordes cristalinos, “mil casas no ar”, “as assas são para proteger”, as “imobiliárias”, “virou”, aumenta ligeiramente o ritmo da nave espacial comandada pela BT, “assas são para combater”, “mas só quando quiseres pousar a paixão que te roer”, és, serás, não és, “é um amor que vês nascer”, “prender”, “aconteça o que acontecer”, solo da guitarra com borbulhas de adolescente que delira com gomas e cocaína. “Aconteça o que acontecer”, a progressão atinge o terceiro nível, com um autorizado solo da guitarra eléctrica. “Mais uma música francesa, Zarkozy, Merkel, que se lixem! Nós somos do Porto!”. “Efectivamente”, a pop perfeita, com uma métrica do piano de filme animado em três D, cinestésico, como “adoro o campo”, como “esplanada de um bar, como “pássaros a esvoaçar”, “o riso” da puta dos outros, “cágados”. “Efectivamente”, coro: “Lalalala”. “Adoro os pedrastas que passam”, como “ratos de esgoto”, como “disfarçam ao dealar”, “efectivamente o Porto é diferente”, a declaração de amor: “Gosto desta gente”, como “aparentemente escuto as conversas”. Coro: “Papapapa”, os GNR são gradualmente engolidos pela histeria do público. Durante uma breve citação a “Portugal na CEE”, surge uma pós-adolescente, e canta: “Eu bebi sem cerimónia o chá”, Rui Reininho: “Como uma ideia que mata”. Ela: “UUU”. Rui e a sua partener e o público entoam: “Lotus azul, tigre de papel, triângulo dourado”. Rui: “Princesinha no trono de jasmim”. Ela: “Deixei-a a sonhar por mim”. Ambos: “Ana Lee, Ana Lee” pop com acordes tropicais debitados pelas guitarras. Ela: “São unhas que cravam”, crava-as nas costas do Rui Reininho: “Unhas que cravam” ambos: “São mãos que colhem, Arrroz xau xau”. “Bellevue” , bateria, baixo, teclados, 2x2, baixo: voz: “Leve levemente como quem chama por mim”, no ecrã atrás da banda surge um aeroporto, “subo a mão”, não sabemos para onde vai, a cadência é fílmica, “encosto ao vidro o anel de brilhantes”, quem és? “Com muita atenção”, a expectativa: “Ai! O meu coração”, aqui: o refrão: “Sabem que me escondo na Bellevue”, é o nome deste filme, “ninguém comparece ao meu rendez-vous”, tétrico: “O espelho, o esgar o sorriso cruel”, o local do parto, “experimento o colchão” . “Bellevue”, “rendez-vous”, guitarra acústica, “os meus amigos”, “agora mais ninguém confia em mim” é a declaração de um solitário voyeur, palmas. Ao solo do violino responde o teclado de Tóli, a enegrecerem a melodia, banda, solo do violino, teclado, palmas, o violino penetrante e intenso como o fio da lâmina de um punhal. Pausa. O violino prossegue a sua penetração, cada nota é uma punhalada sobre um cadáver exangue. “Ninguém comparece ao meu rendez vous”, e “as minhas amiguinhas lá no jardim”, “agora mais ninguém confia em mim”. Embala-nos na desculpa: “Era só para brincar ao cinema negro”, “jovens no desemprego”. Palmas. As harmonias que introduzem “Sangue Oculto”, são de um genérico de filme de série B, as escovas da bateria pronunciam que o sangue que alimenta a canção é pulsado de uma fonte vítima da preguiça, “principal”, “a luta na arena”, perde o pender de rock de estádio e enquadra-se na play list de uma rádio que emite no lusco-fusco. “Ao fugir de uma investida”, Reininho ajoelha-se, “ao saltar a fogueira”, canta muito devagar sobre o tónico lounge, “sem correr e sem saltar”, levanta-se: “Portugal não é só inveja”, “oculto sangue, latino que temos para dar”. Sobre o pano de fundo emite uma TV que transmite o passado dos GNR. “Piloto Automático”, é apresentado com a dimensão de uma bateria comandada por Tóli, o pendor da dinâmica é puramente marcial, com os bombos a ecoarem como pulsações que nos revelam a metamorfose: “Quando chega a meia-noite começo a capotar”, provocada pelo “fígado a explodir”, dinamitado por “wisky puro”, coro: “Vodka, vodka”, Rui Reininho: “Bagaceira”, coro: “Vodka, vodka”, Rui Reininho: “Seco madeira”, Rui Reininho: “Vodka, vodka”. “Ligo o piloto automático num programa a esquecer”. O hino contra-natura, “Mais Vale Nunca”, é cantado em uníssono e finalizado com um solo magistral da bateria de Tóli. Segundo Jorge Romão: “Tóli, trinta anos a tocar bateria! O melhor do mundo!”. Tóli oferece as suas baquetas ao público. Jorge Romão: “Gente são trinta anos, o que é que se canta?”, o público canta os parabéns aos GNR. Vídeo com recortes de notícias da banda portuense. O slow-pop, com a preponderância dos teclados, numa cadência sedativa, com o cantor a abandonar os laços que o prendem “esqueci o calor do lar”, teclados e violino, “parado e o mundo vê”, solo da guitarra que é correspondida pelo violino, “esqueci o calor do lar”, do qual “fugi sem hesitar”. Tóli empunha uma guitarra semi-acústica, “Burro em Pé”, meio tempo, “vieste para aprender”, “põe um dedo no ar”, a pop é próxima dos Beatles, quando se inspiravam na obra de Vivaldi. “É verdade, grande surfista: Jorge Romão!” , “pronuncia do Norte” é antecedida por uma ovação, o slow do norte, que eleva um sotaque “lá donde eu venho”, público “torpe”, palmas. Entra em palco New Max: “A bússola não sei se existe”, “é a pronúncia do Norte”, Rui+ New Max: “Corre o rio para o mar”, acordeão, público: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar”, é a declaração de independência da poesia, ovação. Rui Reininho retira-se e New Max lidera a canção que subitamente ganha um ritmo soul-funk: “GNR é a pronúncia do norte, os tontos chamam-lhe torpe”, público: “GNR!GNR!GNR!”. New Max: “Não tenho Romão. Não tenho Tóli. Não tenho Reininho”, o seu timbre agudo revela-se no epílogo: “É a pronuncia do norte”, “Porto muito obrigado! GNR 30 anos!”. Após o regresso de Rui Reininho, surge “Cais”. Revista no ritmo de um petroleiro a afundar-se devagar, “barco tem pés para andar”, a sua correspondência é “quando a maré negra chegar”, não há solução teremos que a “limpar”, 2x2, “imundo imenso sais”, “ó neptunias, quais sereias sensuais”, o refrão é a absolvição: “Se o pecado morre ao largo, então é ver no cinema se ´Há lodo no Cais`”, a guitarra de timbre agudo, perturbante, “imenso sais”, “sensuais”, a Foz: “Voltas ao Cais”, progressão contida com ligeira variação. “Voltas ao Cais”. “Esta música é linda”, Rui Reininho coloca a mão na anca direita e a outra na testa. É “Voos Domésticos”, slow doméstico, “ausência”, “ai”, “cozinha”, “campainha”, que se revolta numa ligeira aproximação a um tango encharcado em vinho do Porto: “Num gesto de avareza só pago a sobremesa”. A chantagem emocional: “Olha a turbulência é da tua ausência”, num romantismo depressivo pop, solo do violino, descolam, “ai a turbulência”, “quem és?”, “a torre de control”, “lençol”, “quem sou”. Rui Reininho: “UUUU”, público: “UUUUU”. “Viram os nossos cartazes com a inscrição Câmara Municipal de Lisboa?”, assobios e apupos do público. “Las Vagas”, com teclado como intro, o baixo peja-a de tensão, palmas de Rui Reininho, o teclado é pianíssimo a introduzi-la no universo musical dos Casinos, “marina”, “de ouro a mina”, “aceita apostas”, eu “serei a gorda”, “e tu?”, “e saberás quem paga?”, serei “um peixe fora de água”, o piano mantém-se impávido e sereno perante os acordes do violino, a ser o catalisador da angústia, “serei a gorda”. A partir de “serei a gorda”, a banda une-se ao ritmo do teclado, e aumenta a progressão, que “pensa”, “peixe fora de água”. “Sou um peixe fora de água”, aumenta a progressão, “sou um peixe fora de água”, aumenta a progressão, “sou um peixe fora de água”, massa sonora que reúne o violino, bateria em break beat, baixo, guitarra, teclado, solo da bateria, violino numa luta contra o tempo resulta num psicadelismo associado à morte. “Esta música é muito linda Unika”, “gostem das mães”. É o slow-naturalista, “orvalho”, “na casca de carvalho”, a canção segue as regras de uma composição clássica pop, ganha fôlego quando se transforma em “fantasmagórica”, “aiaiaiai”, e a guitarra eléctrica sola-estoira e transgride como um solo de Slash. “E agora Popless”, caixa de ritmos + bateria + teclado, introduzem as notas do refrão, “subir”, “existir”, “senti-la pousar”, “deixei-a”, “lá vem ela sabendo que é linda”, “cresce”, “interesse”. Tóli introduz o pedal wha wha, repetitivo que se traduz num tímido swing, “POPLESS”, teclado, “foi uma pena deixa-la a jantar”, “passou a hora”, “vibrar”, “bela”, “à janela”, swing pop, com múltiplos casais. Vídeo com os GNR. “Felizmente a noite sai, ainda bem há névoa por aí, estou contente”, a voz suportada pelo piano, “se a luz se esvai”, “se o amanhã perdido for”, “horror”, a bateria irrompe sobre a lentidão do piano, “O céu não fecha já sobre nós”, “revelam cierta imagem atroz”, “perdido for”, a declaração de guerra: “Directa sim, eu declaro morte ao sol”, “OOO”, o solo da guitarra é semi-distorcido que lhe dá o último recorte. Loucura no Coliseu do Porto. “Vamos à la playa?”, com as luzes acesas, os fãs anseiam pelo banho nas “Dunas”, cantada quase na totalidade pelos tripeiros. “Inferno” reúne no palco todos os convidados. Tóli: “Muito obrigado”. “Sangue Oculto” é de novo convocada a subir à arena “principal”, na versão próxima do original que emancipou o rock e rompeu com as fronteiras ibéricas. “Esta é dedicada ao James Rodrigues”, a guitarra eléctrica introduz os acordes hipnóticos do refrão, “a vida é assim e assado”, “para conhecer a verdade”, “perguntem ao meu espelho”, sincope, a introdução do piano talking head, remete-a para o absurdo. “Portugal na CEE”, quando era assunto de jornal “na TV”, rock, “Portugal na CEEE”, a ironia ainda é actual: “Quanto mais se fala menos se vê”, descarga eléctrica, numa métrica de rápidos 2x2. Jorge Romão: “Se nós estamos cá, há trinta anos a culpa é também vossa!” palmas. “Sexta-feira”, com o input de New Max, “ode a Japão”, Rui Reininho: “É Domingo na Ribeira”, palmas-gritaria, “grande buraco da Madeira, ninguém vai levar a mal”, ovação, esperamos a sua “confissão”, ambos: “Já não sei em quem votei”. Acendem-se as luzes do Coliseu, entram os convidados em palco, abrem garrafas de champanhe, e recebem palmas calorosas e entusiástica, GNR sorriem e são fotografados para memória futura.
Voos Domésticos- Celebração dos trinta anos de carreira dos GNR, 12 de Novembro, Coliseu do Porto @ Porto
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