domingo, 25 de março de 2012

Psicopátria

As luzes do palco do Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz estão estáticas marcando a ausência dos músicos que acompanham GNR que durante trinta anos sobrevoaram Portugal. Palmas. Orgão e piano introduzem “numa terra sem leões” numa casa portuguesa “cheira-me a fêmeas fatais” concerteza: “algumas confusões, problemas ideias”. O violino marca o início de uma leve progressão: “Rei da rádio dá-me a voz, canta por nós, Rei da pop dá-me um som”, baixo de Jorge Romão impõe o acelerar da progressão. “As cidades tão banais e rurais, faz das tripas corações”, o baixo traz consigo a banda: “Rei da rádio dá-me a voz”, “esquimós”, “morreu por nós” (eco), teclado, palmas. “Boa noite”. As teclas assumem uma melodia tépida, como se fosse uma harpa, a bateria coloca-se entre este eixo e o baixo visceral: “Tarde de chuva a Península inteira a chorar”. Amélia ergue-se como um “sirio cintilante” , observada pelo Padre Amaro: “em frente ao altar” o que se crê “um anjo fumegante”, o violino sobrepõe-se ao ritmo binário: “Um desejo profano a crescer” do português de aqui e além mar “até sinto a língua morta” no centro há um anjo petrarquista que “devem tentar compreender”, será que vacila entre o sacrifício e o pecado, “estará a meditar”? Solo de violino, “Ai” (eco), “Ui” (eco), o ritual: “Atirem-me água benta”, “por ela assalto a caixa de esmolas”, “é Maria, casta eu sei, virgem ou não depende da vossa fantasia” . O convite irrecusável ao nosso Estado: “Vai para o Inferno de Dante”, solo Hamond e o violino a intervir circularmente: “Ai” (eco), “Ui” (eco). “Atirem-me água benta”, por ela assaltamos “a caixa de esmolas” e seguimos para “o Inferno de Dante”, atirem-lhe água “bem fria” (eco), “Ai” (eco), “Ui” (eco). “Elvis Costello e o David Byrne”. “Leve, levemente como quem chama por mim”, a canção da película: “o odor do medo puro”, não sabemos que o anel de “diamantes” é de fancaria. Rei de POPortugal canta sobre as ondas sonoras de orgão negro, “com muita atenção, ai! O meu coração!”. O cerne do problema: “Sabem que me escondo na Bellevue”. O aviso na placa do portão da Bellevue: “Cuidado com o cão”, mas a sua presença feroz não o impede de violar a propriedade “e subo a mão”, o sintetizador introduz uma textura artificial “diamantes” e seguimos o narrador “com muita atenção”, que sofre “Ai! O meu coração!” e não sabemos: “Sabem que me escondo na Bellevue”, e a casa dos espíritos tem um “corredor” que nos conduz para um “sorriso cruel”, seduz e instiga a saltar para a “cama de Dossel” , “experimento o colchão”. “Sabem que me escondo na Bellevue” e as “minhas amigas no fundo do jardim agora mais ninguém confia em mois”, a bateria quebra a rotina lugubre dos teclados e insurge-se como o batimento de um coração receoso do fim. “Agora mais ninguém espera por mim”, pausa, palmas, o violino é uma lamina cortante para dessosar os cadáveres e partir da qual se impõe a progressão da banda. Rei de POPortugal mimetiza a posse introspectiva de um professor catedrático perante uma equação por resolver e com o indicador aponta para a janela: “Sabem que me escondo na Bellevue”, os corpos ainda estão quentes sob a relva “as minhas amiguinhas no fundo do jardim”, “agora mais ninguém confia em mim” era só para “brincar ao cinema negro” a tela branca projecta um país com “jovens no de-sem-pre-go”. “Penteado igual ao do David Bowie, ´Ziggy Stardust and the Spiders from Mars`”. Violino sobre o piano de cauda dedilhado por Antonio Cesar Machado: “Lá vamos nós!”. Palmas. “Obrigado gente sentada!” A bateria toma a pulsão da canção pop com borbulhas de sabão suspensas no ar, “pra limpar”, irrompe o grito do Ipiranga “logo ao nascer” e o drama “nada apetecer” e a resposta: “Mais vale nunca mais crescer”, a bateria dá o ritmo cardíaco ao recém nascido e é alegre e divertido estar vivo, “mas olha para o que eu faço: mais vale nunca mais beber”, os pratos da bateria deixam espaço para os acordes abertos da guitarra e a doçura do teclado: “nunca mais crescer” e “mais vale nada”. O baixo de Jorge Romão insurge-se como se fosse uma das artérias que nos liga ao cérebro e uma resposta em forma de wha wha é introduzida pelo teclado de Hugo Novo. Rei de POPortugal bate palmas ao ritmo de um parto feliz providenciado pela pulsão alegre da bateria e os acordes de cor de papel de parede de um quarto bebé. Pausa. “Vais ouvir e ver”. “Nada acontecer”. “Mais vale nada”. “Mais nunca mais crescer: Nunca mais querer”. “Mais vale nunca mais crescer”, “nunca”. “Mais vale nunca mais crescer”. Violino: o rompimento do cordão umbilical: “NUNCA!”: “NADA”, violino, e uma estrondosa ovação é desferida a GNR por parte dos presentes.“Obrigado! Também às vezes... E biba e biba Espanha: TERÉTER. Inteligência e sensibilidade da canção número cinco”. O piano de cauda é dedilhado por um anjo de blaiser preto secundado por um sintetizador “Asas”, “your song; encosta-te a mim”, resolve a equação com um falseto iconoclasta “asas servem para voar, espreitar mil casas no ar”, soa um único prato da bateria sequênciada pelo bombo, estoiram “do alto do ar”. O baixo amplia a canção: “quiseres pousar na paixão que te roer” e o violino prolonga-se languidamente e lascivamente “aconteça o que acontecer”, o hammond pelvilha-a com mortalidade. Rei de POPortugal, segura o tripé com as mãos e a progressão circular é direcionada num ponto preto sobre a tela branca. “Pousar na paixão que te roer”, o buraco na tela aumenta rapidamente “de acabar”, o falseto corresponde à voz da alma: “Já não há leis para te prender” adicionado por um final épico. “Tóli Cesar Machado no piano forte. Chegamos esta tarde e ligou-se ao piano, é um espécie de Mexia mas na poupança! ´Valsa dos Delatores`”, violino, teclado infantil, Nursery Rhymes: piano de Antonio Cesar Machado, “tens medo do escuro tal criança sem futuro, és fraco velhaco cobarde armado em duro”, violino subtil, “no caixão”, o piano a rezar com o rosário nas mãos e o violino persegue o pecado e emerge uma textura infantil injectada por Hugo Novo. “Nem na cama estas seguro”, “sofre de medo puro”, Ruca Lacerda dá um tempo longo sobre o bombo, dando ritmo à marcha contra quem “sofre do medo puro”, “dos mortais que te rodeiam” e o português como as mentiras: “mesquinhas serpenteiam” . “É uma volta no caixão, perseguição”, o poeta abre os braços e o convite denota rejeição pela profunda oração/ordem: “E vai pelo Mundo”. O Rei de POPortugal levanta o braço e movimenta a mão para à frente e para trás e instaneamente dança como um soviético e o bombo encurta o seu batimento, aumenta a progressão e o circo de feras pega chamas. “Nós deitamo-nos todos os dias cedo, para que isto dê certo. É uma espécie de erecção”. O piano de cauda de Antonio Cesar Machado, a voz do criador e artista: “A chuva esconde-se no orvalho”, “na casca de carvalho”, o ritmo é processo perpétuo “única a dar gás”, és “a Rainha das marés”, és “única a dar gás”, a certeza “podes seguir aí sentado, o crucifixo, nas mãos uns dentes de alho” e se o narrador se transmutar numa antropoformia: “Se eu uivar e acordar cheio de grelos”, “a Rainha das marés o Mundo salta aos seus pés”. O violino irrompe num solo circular mas a partir do qual irá lançar notas diagonais a assumir o advir da tempestade secundarizada pelo piano, baixo, bateria. “És a única a dar gás a Rainha das marés”, “és única, a única”, “trégua”, benze-se sobre o ritmo binário e o epílogo é pontual e simultâneo e em altura. “Em vez de tratar vocês por tu. Vou tratar voceses por tu”. “Todos me tratam por você, menos tu não sei porquê”, a silaba tónica “o” é reproduzida pelo piano de cauda, “já não sei onde parei”, “voltei”, “fiquei”. “Eu inventei o verbo amar”, no Trópico de Capricórnio de Miller, Henry, “eu gosto de voce brasileiro”, pausa, o violino insurge-se sobre o piano, “onde cheguei”, “se parti e não voltei”, aceleram vagamente o ritmo, “Eu não gosto de vocês, parti sem hesitar”, “chorar”. O balanço de Copacabana com uma mulata ao colo: Rui Reininho vê-se no seu ginásio com o Carlos Carreiro: “Eu que inventei o verbo amar”. “Esqueci o calor do lar” e o assobio é o espelho do chamamento da serpente: “eu”, “voces”, “partir”, “vou ficar” (eco). “Obrigado Figueira da Foz! A última vez que viemos aqui, estava o nosso amigo Santana Lopes, assim com menos cabelo do que eu” e mexe no cabelo, o público ri. “Quando aqui voltarmos já devemos estar hospedados no IPO”, público ri sonoramente. “E o Tóli no Casino até às seis da manhã? Las Vegas, ´Las vagas`, let`s dance and be alright”, teclado Korg, insere os acordes macros: “AH! É tão grande é macro onda”, é um Tsunami que vai “inundar de ouro a mina”, violino, baixo, bateria 2X2, violentos de hair metal. O revólver passa de cabeça em cabeça dos ouvintes: “Roleta Russa aceita apostas”, a selva, “eu serei a gorda, serás a magra, a cabra cega”, “a vaca”, “a magra”, a antopoformia a sugerir a transmutação do ser: “Estarás de foca”, “peixe fora d` água”, solo tresloucado do violino a incutir a perspectiva: “a magra”, “não havia vaga”, estarei de “foca, tu de tanga”. “Todos de tanga”. “Somos todos peixes fora de água”, “um peixe fora de água”. Palmas. “O Jorge Romão está com um ar encaralhado porque será?”. No imperativo para o público: “É definitivamente ´Sexta-feira` na Figueira”, a guitarra de Antonio Cesar Machado assume-se na condução da canção incutindo-lhe acordes poderosamente pop, afastando-se da vertente light red neck, as pessoas abandonam as cadeiras e regressam a cada “Sexta-feira na Figueira”. “Estes são os sapatos que nos vão enterrar. A canção francesa é dedicada ao nosso amigo Tony Carreira”. A Psicopátria: “Pássaros estupidos a esvoaçar”, teclado saltitante, “os cagados de pernas para o ar. ´Efectivamente`”, o baixo impõe-se na diversão estilistica Pop, somos “ratos do esgoto habituados a controlar”. Rei de POPortugal: “Escuto as conversas”, baixo, teclado: “sem moralizar”, a marcação é dada pelo piano trepado pelo teclado, a paisagem é rupestre com “Bichos” de Torga presente(s): Palmas. “Super nada”. E sobe o sangue à cabeça de Ruca Laçerda: Rei de POPortugal: “Estás a ficar corado?”. Os acordes do piano surgem como elementos decorativos em relação ao teclado que insere os elementos fundadores de um leito de onde “há um prénuncio de morte lá do fundo donde eu venho”, a inóspita e poderosa verdade irrefutável do dono do Trono de POPortugal: “Canto a pronúncia do Norte”. Rei sob as luzes brancas ouve a sua voz e o teclado: acordeão: cada nota dedilhada em tempos diversos transporta a consciência para um nível superior, sublime: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar”, a barca baloiça com a incursão da bateria, as encostas do Douro “secaram”, vinha após vinha, que encontram o seu dissipar no movimento pérpetuo de “corre o rio para o mar”. Os acordes marcam uma constante emolação: “é a pronúncia do Norte”, “e as teias que vibram nas janelas esperam um gajo parecido com elas”. O compromiso com a independência lírica: “Não tenho barqueiro nem hei-de remar”. “Corre o rio para o mar” (eco) para cessar as almas presentes que esperam a barca do Anjo. “Moscovo? Lindas praias!”. A voz da Pop: “MUÁ. MUÁ”, a cantar num salão de baile num cruzeiro na companhia de Cervantes, “eu vejo destroços de metal a flutuar”, “vejo no Mondego”, ao situar a acção de “Sete Naves” numa geografia familiar instrui o público a seguir a narrativa claustrofóbica. GNR recorrem a uma repetição circular progressiva dos acordes, com um recorte interno de Jorge Romão irmanado à bateria e esta sequência minimal provoca sincope: “sinos sinetas ao acordar”, violino, breaks da bateria, hipnótico, ácido, e os dedos “frios vontade de me enferrujar”, a decomposição: “Matéria por soldar”, “peso o ritmo, paro de trabalhar”, “as vagas onde elas vogam”, falseto: “Voltam-se devagar”, cresce um odor de Marrocos de S. Burrogs, William, Naked Lunch. A voz do Rock: “AAAAAA”, “AAAAAAA”. Sincope. Baixo: “AAAAAA”. O contra-fado: “As vagas que eu construo não são feitas para navegar aguentam a violência de um beijo mas nunca a do mar”, contra o “Orgulhosamente Sós”, Salazar, Oliveira. Os breaks da bateria marcam o aumento do ritmo e a altura , através de um gradual 2x2: “LÁLÁLÁ”; Jorge Romão: “BOM! BOM!BOM!”; “LÁLÁLÁLÁ”; “BOM!BOM!BOM!”. “Há uma questão sexual entre mim e os bichos”. Rei de POPortugal balança no seu colo de braços compridos um bebé e as escovas da bateria reforçam o R.E.M do recém nascido. Jorge Romão. “Principal”, o ácido do vinho do Porto escorre das encostas do Douro, “ardem chamas de dois sóis”. Portugal: “Na luta na arena principal mato-me primeiro e a ti depois”, ao “saltar a fronteira”, “estou na Figueira” , sem “correr e sem saltar”, D. Quixote de La Mancha, Brel, Jacques, “oculto sangue que temos para dar”, cantado e finalizado em surdina pelo público. Ovação. Ovação quando o Rei da POPortugal regressa ao palco do Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, senta-se ao piano e recorta o teclado, ri. “Há um ano atrás, estreamos, ´Voos Domésticos` no Portugal Fashion”. “Voos Domésticos” é Gardel vertido no Último Tango em Paris através da guitarra de Antonio Cesar Machado, violino agudamente: “aterrar aqui”, o desejo utópico: “Num tapete mágico” com Balthus, acutilante doce e belo: “Fim em mim”, a dependencia amorosa: “Olha a turbulência é da tua ausência”, o local: “algures na cozinha, jantar gourmet”, “café”, o violino progride e transporta consigo a força doentia de uma melodia “em pé”, “Torre de Control fantasia de lençol: adivinha quem és?”. O violino acelera exuberantemente mas o baixo de Jorge Romão domina-o através da sua prolongada obssessão, nesta sequência: Romão, Jorge. O violino insere os acordes da torre emissora para Paris e Berlim, contra MerKozy. “Era um GNR!”. “Tenho a anunciar às vossas moléculas, que o Carlos do Carmo canta hoje em Ilhavo. AHHAHAH! Ele sabe que eu tenho um humor mordaz! Gosto muito do Carlos”. A textura dos acordes da guitarra de Antonio Cesar Machado, exibem uma doçura grandiloquente, através da subtileza do seu ritmo a partir do qual circulam os outros instrumentos, ouve-se a nave a descolar: “Se há lodo no cais”, “onde o mercado impera e vamos longe de mais”, é a revolução sobre a escravatura dos cravos, “muito cuidado”, regresamos ao estrangeiro: “Voltas ao Cais”. A bateria desfere um ritmo afro beat, “sais”, é um banco de areia: “Ó neptunias, sereias sensuais”, e “se o perigo mora ao lado então vai ver ao cinema se ´Há Lodo no Cais`”, com Brando, Marlon, “vais escorregar: muito cuidado: voltas ao Cais.” O sujeito profético: “Muito cuidado, atina, voltas ao Cais”. “É o último show que fazemos para gente sentada”. O piano serpenteia como uma serpente egípcia “felizmente a noite sai, ainda bem que há névoa por aí”, “se a luz se esvai”, “e uma sombra se queimar neste lugar”, bombos, “metamorfoses de horror”. O holocausto travestido de democracia, “vão demorar”, ficamos estáticos “se o céu se fecha sobre nós” . E a voz de Portugal: “Revela ciesta rouca voz”, sobrepõe-se a guitarra de Antonio Cesar Machado, o piano serpenteia: “Directa sim. Eu declaro: Morte ao sol”, “imagem atroz”, “directa sim. Aí Vem a luz!”, a representação da morte num tríptico onde estão inconscientes os crucificados: “Ao sol”.


Voos Domésticos, GNR, 24 de Março, Centro de Artes e Espéctaculos @ Figueira da Foz