domingo, 1 de março de 2015

Alice do Outro Lado do Espelho

No ínfimo palco instalado no café do Cine-Teatro de Estarreja surgem dois homens de estatura alta, um dos quais toma a palavra: “Bom dia, boa noite”, e explica a particularidade da razão deste concerto: “A maior parte destas canções são de um audibook [Nota: “Chá, Café e etc.”, publicado pela Tcharan] e vamos tentar não destruir aquilo, a primeira chama-se ´Taça de Chá`”. O emissor denomina-se Rui Reininho e o seu parceiro é Armando Teixeira, que introduz um ritmo minimal digital através das suas máquinas analógicas, “máscara caída” e “os crisântemos no jardim”, o minimalismo da pontuação é constante, “geniais como ele”, “lágrimas”, “os seus olhos”, “confundiam-se cintilantes”; a voz de Rui Reininho ganha uma textura robótica “é remédio”, o minimalismo perdura, “deixo as cabeças nas esteiras”, “jardins”, “pela manhã”, “com leque de marfim”, pausa, “a estampa do pires igual”. A segunda canção é apresentada por Rui Reininho da seguinte forma: “Partimos então para ´Salão de Chá`”. A cenografia sonora é introduzida por Armando Teixeira e corresponde a um andamento repetitivo digno de um filme mudo que enquadra uma “menina que quer ir salão de chá com a mana”, ambas vestem vestidos rodados de seda mate e nas cabeças envergam chapéus com plumas de avestruzes albinas, “cetim”, “boutique é chique”, pausa; a voz de Rui Reininho ganha uma dimensão cósmica: “quero sapatos de ballet”, mas há algo que a perturba: “O chá está quente e queima-lhe o dente” e “queima toda a gente”. A terceira canção “Bule” tem um ritmo-melodia imposto por Armando Teixeira que corresponde a andar de bicos de pés sobre o gelo, “o bebé”, “mesa”, “e a mana refilona”, a voz processada como a de um robot de Rui Reininho assevera: “O bebé só bebe leitinho”. A delicadeza da cadência do loop permite ao espectador imaginar um bebé de fraldas a gatinhar sobre o tapete de arraiolos que sussurra “baixinho ao ouvido da mãe do bebé” que responde a si própria: “a mãe: pode ser, pode ser, pode ser”, o loop ganha uma consistência de uma temeraria hipnose infantil, “devagar e não se calava”, “beberam, beberam o leite do bule bulido”. Palmas. Rui Reininho não poderia ser mais universal: “Obrigado aos nossos poetas, poetisas e peotastras”. A quarta “Café des Anges” tem uma cadência rítmica Blues Bebop introduzida por Armando Teixeira, o fumo advém do verso: “com cigarros des Cafés des Anges”, há uma figura esguia que espera o seu cliente “sentada no fundo da janela usando um gorro vermelho”, os acordes processados por Armando Teixeira saem das colunas e Rui Reininho elucida: “cigarros apenas no Café des Anges”, a voz do narrador assinala que se deve “atentar na morena sentada”. A constante circularidade do Blues Bebop erige no palco um café como o Majestic, Rui Reininho estala os dedos como se fossem amarras lançadas à fantasia, e diz: “Jazz is not dead”. A espera é dissimulada através do consumo de “cigarros no Café des Anges”, a aceleração do Bebop impõe o acicatar do líbido por causa da memória da “morena sentada junto à janela com um belo gorro vermelho”. A quinta canção é apresentada cordialmente por Rui Reininho: “Vamos ter o nosso momento Manuel Pina”, “Café Gelo”, que confere às palavras uma melancolia de fim de tarde a beijar uma musa suicida, “esta ressurreição dissimulada”, das máquinas de Armando Teixeira emanam um universo decadente,“presque du café de la rouquette”, que remete pour la nouvelle chanson francaise-- mas usando a figura de estilo sinédoque que em “Café Gelo” corresponde a um sample que nos remete para o universo francófono datado da década de sessenta do século passado. A voz de Rui Reininho é um vibrato seco de uma lira de fancaria, “irregulares”, “onde cantam os sentimentos irregulares”, a introdução de um quarteto de violoncelos castrados incineram a consciência de uma viúva-alegre. “Pernas lentamente até um sítio e istmo escuro entro”, “dentro de mim”. Na sexta canção “Esplanada” sobressai a voz doce de Rui Reininho sobre o silêncio das máquinas de Armando Teixeira : “Bob Dylan encheu-se de dinheiro”, “como dantes”. O tango apropria-se de “Café Orfeu”, a melodia é uma silhueta de sereia coberta de um veludo tinto que lhe pinga dos lábios fruto do pecado original, “não tivesse existido”. “Não tivesse existido”. Palmas. “A Hora do Chá” e “Lugares Comuns” são emitidas das colunas do café do Cine Teatro de Estarreja em regime de gravações enquanto uma figurante serve uma chávena a cada um dos músicos. Rui Reininho não esclarece: “São poemas de Barreto de Guimarães”, e “Arca de Noé” é vilipendiada oniricamente pelos teclados e é enquadrada historicamente por Rui Reininho: “Antigamente as máquinas estavam sempre a avariar”. Palmas. “Hora X” é marcada pelo reco-reco que lhe confere uma estéctica kitsch, “à hora X à mesa Z é sempre a mesma coisa”, a fábula é representada através da presença do “senhor avestruz”, o ritmo repetitivo do reco-reco é como o trinar da cauda de uma cascavel alcoolizada, “ovos estrelados”; e a teimosia do poeta de representar que “à hora X no café Portugal é sempre a mesma coisa”, e “enquanto a ditadura, dura”, o reco-reco ganha um poder hipnótico e consequentemente uma ruptura própria do jazz, “yeah”, “à hora X no café Z é sempre a mesma coisa”. Rui Reininho esclarece sobre a autoria de “Hora X” de “Mário Cesariny” e informa: “Temos uma encomenda dos descendentes”. “Agora sim, creio eu, Pedro Mexia” , “Café”, a melodia introduzida por Armando Teixeira é uma ténue ladainha infantil, “os penaltis”, a música ganha uma espessura escura anulando pontualmente o som ingénuo, “o céu”, mas quando se dá uma união dos dois universos teoricamente opostos, há uma hipnose que nos catapulta para a determinação narrada por Rui Reininho através do seu timbre seco e impositivo como uma fatalidade, “os penaltis”. A décima primeira canção tem uma poesia de “António Gancho” e segundo Rui Reininho denomina-se de “Café da Manhã”. A entoação dos versos por parte de Rui Reininho corresponde ao de um psiquiatra apaixonado por uma inimputável, “hospital psiquiátrico”, os sons emitidos pela mesa de mistura de Armando Teixeira incorre num fluxo incidental de tão fantasmagórico, “dantes era de manhã nos jardins”, que reverbera numa progressão como uma ferida no céu, “que fica e casa”. O narrador revela a proveniência dos “nossos cadáveres no nevoeiro já estão mortos”, a volúpia da melodia negra e incidental derrama um fogo preso “de todas as partes”, e a predominância da eterna espera: “muito tempo a sós”, “é uma maneira de trabalhar”, “escrever poesia”, “nostalgia de estar em casa”, “é frequente dizer optimista”, os sons ganham um minimalismo progressivo, “metal dos cafés”, que instaura o início da hipnose, “por cá sempre bom passar a vida”, surge uma frequência de um rádio taciturno sintonizado por António Lobo Antunes que confere “A Café da Manhã” um final épico. “Pólo Norte” a décima segunda canção tem uma melodia digital pontuada pelo domínio de elementos circulares saltitantes, “o que esperas à mesa do café?”, que são subsequentemente manipulados por Armando Teixeira evocando uma ânsia que seca as veias das roseiras lisboetas, “o que esperas à mesa do café olhando?”, pausa, “um oceano imundo a fábula de papapa”. No décimo terceiro tema “Comboios” Rui Reininho dá início a uma performance acidental: “Era um papel desta cor”; “não encontro o poema”, “juro que nunca me aconteceu isto”; “mas não vou começar a chorar”. Armando Teixeira introduz sons de um comboio cósmico conduzido por psiconautas, “os comboios que fazem parte de nós que partem num instante”, que segue sobre num carril de fantasia, “lá comboios com pizzicatos”, onde circula ao sabor do vapor, “larga este beijo como um fundo lamento”, que esfumaça como uma “espécie de hip-hop no ar”. Quanto a “Du Thé, Préconisé par sa Majesté” tem a honra de ser “dedicada ao meu jantar no Caracas”. Surgem sons crepusculares, “commes des Lords”, cavalgam em Pégazos, “se approche du soutane de la Raine”, e no tabuleiro de xadrez “chacun nosso que tombo mallourosement”. Os Pegázos emitem uma onda sonora que se enrola abstractamente em vias de beijar a areia do mar salgado, “qu`un appelle du thé”, “et en portugais et en chinois”, quando salpicam a areia a melodia ganha uma expressividade Pop, “chá”, a voz de Rui Reininho ganha uma súbita modelação robótica viciada em chá preto. O décimo quinto tema “Chá Demente” é da autoria do poeta Rui Reininho, o ritmo é destinado a uma casa de chá dançante, “chá demente, talvez um chá diferente”, os versos dançam ao ritmo digital: “um chá decente”, “Chá, chá, chá”, e o acordeão adulterado surge num rasgo de ruralidade onde crescem papoilas cintilantes, “cruel”, “chá doente”, “chá diferente”; o acordeão liberta raios de sol, “chá dormente, é sempre um chá diferente”, o chá digital dançante associa-se à realidade: “Eu sou um Chá da Pérsia, tu és um chá mente”, “chá demente”. Palmas. “Serpentes” revela-se sonicamente através de um reco-reco que metricamente é apoiado num ritmo binário, conjugados equiparam-se ao Pop-jazz como se fossem serpentes de metal a circular sobre telhados de zinco. O narrador tem uma voz de testemunha ocular de um encontro inesperado, “era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra”, Armando Teixeira impõe o Pop-jazz como denominador comum, “e um dia encontraram-se e comeram-se”, que gradualmente se apropria do inconsciente onde tudo é permitido, “AAAAA”, “simplesmente comeram-se”, surgem sons arabescos, “a lição é: não podemos odiar ninguém, ou então…”, “AAA”; e a segunda lição sobre o registo digital extravagante, “ter muito cuidado com o que comemos, ou então é preciso ter muito cuidado com o que se come”, “AAA”, “muito cuidado com o que nos come”. Palmas. Rui Reininho discursa cordialmente: “Obrigado, pelo carinho com que nos receberam”. Palmas. O décimo sétimo tema tem o título: “O Estranho Caso do Amante Preguiçoso”, com poema Pop de Rui Reininho. Armando Teixeira coloca uma agulha digital sobre o vinil que é riscado, as programações são de um groove circular dengoso, “e sigo-te”; a agulha tem unhas de gel, “falo e não falo”, o groove Pop circula por entre o refrão: “Cheiras bem? Cheiras bem? Então vem até Lisboa”. “Sabes bem”, e o saxofone digital oferece-lhe uma repentina beleza psico-activa, “Cheiras bem? Seio bem, vem até Lisboa”, as programações adensam alegremente o verso, “sabes bem esta Lisboa”. O groove é pontualmente e progressivamente curto, e a voz de Rui Reininho é grave: “Os dois”, “acordo às três”, “acordo à toa”, “limpo-te os pés”, o groove liberta-se da sua pontualidade e regenera-se através da Pop. “Cheiras bem? Cheiras bem? Então vem, até Lisboa”, o saxofone sola como se fosse o uivo de um homem sozinho no Frágil, “sabes quem, sabes bem esta Lisboa”. A décima oitava canção “Dunas” tem segundo Rui Reininho: “Uma das frases mais geniais da minha carreira, espero que me acompanhem nesta”. O ritmo é dois por dois e correspondente a uma frequência kitsch, “um resto de boa noite”, que poderia sair das colunas de um baile na província; uma flauta de pan destaca-se da batida, “então aqui vai”. Rui Reininho coloca a voz num falsete tórrido, “as dunas são como divãs, biombos indiscretos”, a toada popular é contínua, “sentados nas dunas alheios a tudo”, “pensamentos lavados”, “saltamos rochedos”; e por mandamento de Armando Teixeira “Dunas” ganha uma volúpia easy listening, “em câmara lenta como na TV”, “dunas”, “nas dunas roendo maçãs, a ver garrafas de óleo boiando vazias nas ondas da manhã”. O público num coro discreto entoa “dunas”, o órgão de uma igreja numa falécia adensa as cores tépidas mas alegres e prenuncia um fim de tarde de pôr de sol ao rubro, público: “Dunas”. Rui Reininho: “sós nas dunas”. Público e Rui Reininho: “Nas dunas”. “Patchiwara”. Rui Reininho: “Saltamos rochedos”; “Como na TV”; “Chá, chá, chá”.

Rui Reininho e Armando Teixeira, “Chá, Café e etc.”, 27 de Fevereiro, Café do Cine Teatro de Estarreja @ Estarreja