terça-feira, 31 de março de 2015
segunda-feira, 30 de março de 2015
Caixa de Pandora
Na rua Cândido dos Reis na baixa portuense encontra-se um palco ladeado por quatro tapumes siameses nos quais se encontra graficamente retratada uma caixa colorida estacionada nos alpes franceses a preto e branco. Na sua fronte-- e em cada lado do palco-- dois plasmas fazem a contagem decrescente ao surgimento das três celebridades do Norte que colectivamente se baptizaram de Grupo Novo Rock (GNR): Rui Reininho, Tóli César Machado e Jorge Romão, que recebem calorosos aplausos; acompanhados por Andy Torrence, Paulo Borges e Samuel Palitos. A primeira canção “Triste Titan” tem um ritmo binário em que o teclado e as guitarras docemente corporizam uma melodia leve como o planar de uma ave de rapina. A voz de Rui Reininho é de um timbre que apela por uma compaixão desmedida “se a manhã te dá um beijo mergulhamos”; “e a sereia no topo do bolo lá caiu”, a relação onírica dos acordes adensam-se pontualmente mas sem obstruir a porta para o sonho, e “vais à Nazaré e vais a banhos”; “ou nós enjoamos”, a aparente circularidade ondulante da melodia revela um mar de ondas de pétalas vermelhas tingidas de salitre do oceano Atlântico, onde navegam os desejos expulsos em dias de breve melancolia. “Lá caiu”; “a vida dos ciganos” errantes e destemidos flutuam por entre uma leveza desarmante de tão bela; se “Triste Titan” fosse música clássica teria sido composta por Vivaldi à procura de uma estação do ano imaginária, mas sendo Pop é naturalmente da lavra de Tóli César Machado. O poder dos acordes do piano de Paulo Borges versus a intensidade delicada da guitarra eléctrica de Andy Torrence secundada pela de Tóli César Machado, a primeira divaga de nota em nota, a segunda preenche os espaços vazios, e a tensão do baixo eléctrico de Jorge Romão com a devida cumplicidade da bateria de Samuel Palitos, inscrevem um crescendo encantatório perceptível ao público que preenche totalmente a rua Cândido dos Reis. “Vais a Gibraltar e vais à praia e vais a banhos há milhares de anos”. Rui Reininho ignora a hora noctívaga e cordialmente cumprimenta os presentes: “Bom dia!”. A pecaminosa “Vídeo Maria” encontra-se alicerçada numa equação em que imperam os sintetizadores que circunscrevem a estrutura Pop e injectando-lhe uma dose considerável da Kitsch, e adicionado a isto a guitarra eléctrica (wha wha) de Tóli César Machado confere-lhe uma frequência minimal. A voz de Rui Reininho relata uma ficção: “Tarde de chuva a península inteira a chorar”, quando sobrevém o baixo eléctrico de Jorge Romão a Pop ganha um pendor de dança numa discoteca onde rodopia uma bola de espelhos desdentada. “O latim vai mudar”, “o que ela faz aqui fumando? Estará a meditar?”. A acentuação do binómio rítmico entre a bateria de Samuel Palitos e o baixo de Jorge Romão citam a funk, mas sem redundar numa aliteração, à qual se adiciona a soletração por parte do teclado de Paulo Borges dos acordes luminosos do refrão: “Ai, ui, atirem-me agua benta”, “atirem-me agua fria”, “o nome dela é Maria”. Andy Torrence insere um solo melodioso, a síntese dos acordes de “Video Maria”, seguido pela omnipresença (wha wha) de Tóli César Machado e por fim a solenidade dançante imposta por Jorge Romão, “ai, ui”, “Maria, sexy eu sei, virgem ou não depende da vossa fantasia”. Os GNR inscrevem um crescendo tenso como um punhal de fancaria na “sua mona”, “lalala”. A terceira canção “Caixa Negra” tem por base um princípio Pop que ganha uma adjectivação Kitsch com a introdução repetitiva dos acordes da guitarra eléctrica de Tóli César Machado, que instaura uma toada de dança de baloiço sustentado num arame farpado. A voz de Rui Reininho é de um timbre contidamente alegre, “caixa negra tem segredos que não revela a ninguém, nem lembra ao diabo também”. A vertente de Pop alegre é gradualmente acelerada; “há quem lhe chame preta”, a voz de Rui Reininho parece um chamamento de um faquir que se espreguiça na sua cama de colchão de pregos, “trompeta”, “há sempre uma bicicleta”, os GNR fazem uma pausa, “perfeita”, “caixa negra traz traz revelações do além”, a bateria de Samuel Palitos aumenta o ritmo e é devidamente acompanhado pela tensão do baixo de Jorge Romão; e Rui Reininho é sedutor: “vai e vem”, “perfeita”, “rarefeita”, “há sempre uma bicicleta”; “uma bala na corneta”. A progressão que os GNR estabelecem é desconstruída pelo teclado de Paulo Borges e Rui Reininho aumenta a altura da sua voz como se fosse um alarme para um Portugal adormecido por ser ocupado por sonâmbulos: “Há sempre uma bicicleta com motor é uma lambreta”, e para que os portugueses se despertem basta, “uma bala na cabeça”, a Pop ganha uma densidade angustiante e anula o seu caracter festivo, “tão perfeita”, e para quem eventualmente esteja distraído, Rui Reininho repete o seu julgamento: “Há mais uma bicicleta que com motor é uma lambreta”, “Caixa negra vem vem” e ilumina a consciência portuguesa. Rui Reininho apresenta os músicos que acompanham os GNR: “Samuel Palitos”, “Paulo Borges”, “Andy Torrence”, e uma figura inexistente: “Pipi Legal, ainda bem que apareceste”. O hino à loucura consta na quarta canção “Bellevue” com o teclado de Paulo Borges a inserir a melodia Pop de valsa negra ou enegrecida quando a bateria marca o compasso de um actor disposto a cometer um crime real, o baixo de Jorge Romão é quem oferece a base para a narrativa de Rui Reininho: “Leve levemente como quem chama por mim”, cai sobre a rua um negrume leve e viscoso de onda de mar mergulhada num crude criminoso, “o odor a tensão do medo puro”; os GNR progridem gradualmente como se fossem uma segunda entidade vincadamente voyeurista, “e subo a mão”, que está expectante quanto ao percurso do criminoso mas imperdoavelmente ignoram qual o objecto do seu desejo, que o fez calçar as luvas de cabedal pretas e empunhar um punhal, talvez “um anel de brilhantes” (?), “salto à janela com muita atenção”; e como é que os GNR “sabem que me escondo na Bellevue” (?), com a predominância dos teclados a conferir-lhe uma copiosa marca de salão de chá preto onde dançam casais rotinados nos domingos, “ninguém comparece ao meu rendez- vous”. “Um foco de luz no último estertor”; “salto para cima experimento o colchão”. Sobrepõe-se à negrito de “Bellevue” uns teclados fantasmagóricos, “sabem que me escondo na Bellevue”, “os meus amigos no fundo do jardim”, “moi”, pausa na valsa, os teclados reintroduzem o padrão de preto sobre preto num minimalismo absurdo, ouvem-se passarinhos a chilrear de um ninho de cucos, Rui Reininho bate palmas timidamente e a multidão acompanha-o na peregrinação ao cadafalso, uma outra pausa nega o fim à canção e consequentemente à vida da personagem que se afunda na sua mais profunda consciência, “e agora mais ninguém confia em mim”, e a tragédia é finalmente desvendada pelo tresloucado: “Era só para brincar ao cinema negro”, a valsa repercute-se através de uma visão de tragédia social que simbolicamente ocorre quando a alma não é pequena: “Os corpos no lago eram de jovens no desemprego”. Rui Reininho apresenta a quinta canção da noite ao ar livre: “A próxima chama-se ´Não há Guerra`”. Que é dotada de um dote proeminente rock disso é exemplo a dinâmica instituída pelos GNR, em que se destaca a batida possante de Samuel Palitos e a sobriedade de Jorge Romão assim como a guitarra eléctrica de Andy Torrence, “Tudo à espera”, “infeliz”; os GNR aceleram o ritmo enquanto Rui Reininho canta: “toda a gente diz não há guerra”. A progressão que encetam encontra-se sediada num reverb de Rock and Roll que o orgão Hammond sintetiza subliminarmente, “Inglaterra”, “não há guerra”. A sexta canção “Las Vagas” predomina uma esquizofrenia Pop, já que os GNR se expressam através de uma aparente alternância dos instrumentos eléctricos, destacam-se o teclado de Paulo Borges e a guitarra eléctrica de Andy Torrence, “é tão grande macro onda, vista ali da marina”, a canção é progressivamente acelerada e consequentemente assume-se travestida de rock, “a roleta russa aceita apostas”, “são mudanças”; Rui Reininho canta incontidamente: “de quem gostas”; “de quem gostas”. E o rock anula definitivamente a Pop, “eu serei a gorda? Serei a magra”, e como será possível que esta personagem de indeterminada figura foi “andar de voga, não havia vaga”? O rock ganha contornos épicos por dilacerantemente se solver como potássio na água gélida de um lago à beira mar plantado, com o devido e angustiante solo de Andy Torrence, “eu seria a gorda, tu serás a magra”. A potência rítmica perpetrada por Samuel Palitos e a cordialidade de Jorge Romão erigem um universo inconcebivelmente agressivo e tão belo quanto nefasto, “tanga”, e por fim o desvendar do rosto da personagem indeterminada: “Sou um peixe fora d` água”. A penúltima canção da noite denomina-se “MacAbro” e é segundo Rui Reininho “mais uma estreia mundial”. O teclado é dedilhado pelos dedos longos de Tóli César Machado, inscrevem uma melodia tétrica que poderia constar numa peça de teatro de Bertold Brecht, o fluxo é profundamente fúnebre mas o corpo da vitima está inconcebivelmente ausente, não há flores ou velas nem tão pouco Jesus Cristo sacrificado numa cruz a pingar sangue das suas santas chagas. “Sabes quem eu sou? Cá em casa é tudo feito à mão”, o acompanhamento negro de Tóli César Machado é constante e Rui Reininho responde-lhe através do seu canto de filho único, inesperadamente o narrador revela que “sou parecido com o meu irmão”, e quando se aproxima do seu reflexo: “Eu saco do facalhão e aproximo-me do meu irmão” e perde o ímpeto assassino e “esfrego um limão”. O break de Samuel Palitos traz consigo os GNR que eléctricamente são complacentes com a melodia Brechtiana dominada por Tóli César Machado. Rui Reininho canta como se fosse o timbre de um marinheiro apaixonado por uma sereia do proletariado, “lálálálá”, Jorge Romão responde-lhe calorosamente, “lálálálá”, a imposição rítmica acelera a valsa mas sem a cremar, antes, inscreve-a numa vida às mãos de cuidados paliativos, “tudo é feito à mão”, “irmão”. Antes da última canção “Cadeira Eléctrica” Rui Reininho é cordial para com o público --que se estima que sejam um total de quatro mil pessoas-- que acorreu ao chamamento surpresa da maior e mais genial banda da Poportuguesa: “E a vocês muito obrigado!”. A lógica que os GNR instituem é a de uma melodia Pop que inicialmente é dominada por um imediatismo improvável, “há no céu da boca um sabor a mel fel”, e o solo da guitarra de Andy Torrence transcreve-a para um mecanismo repetitivo rock, “suicida”, e nesta caixa de pandora “já é de manhã”, “finge um sentimento”, associada ao transtorno rock está também a guitarra eléctrica de Tóli César Machado. Hoje há mudança de equinócio algo que inesperadamente coincide com a poética de Rui Reininho: “quando muda a hora”, o sintetizador de Paulo Borges é um cunho estéctico num vislumbre kitsch, “passa tudo por magia”, quando surge o refrão: “Liga a cadeira eléctrica”, há uma emancipação promovida por Jorge Romão e Samuel Palitos, “sente a energia”, o aumento do ritmo e da altura ressoa gradualmente, “passa tudo por magia”, e reproduz uma sumula rasgada por um rock and pop, “apaga as luzes já é de manhã”, “liga a cadeira eléctrica”, “sente a energia” da vida, “liga a cadeira eléctrica corta a corrente”.
GNR, “Caixa Negra” (concerto surpresa de apresentação do 12º álbum de originais), 28 de Março, Rua Cândido dos Reis @ Porto
segunda-feira, 2 de março de 2015
domingo, 1 de março de 2015
Alice do Outro Lado do Espelho
No ínfimo palco instalado no café do Cine-Teatro de Estarreja surgem dois homens de estatura alta, um dos quais toma a palavra: “Bom dia, boa noite”, e explica a particularidade da razão deste concerto: “A maior parte destas canções são de um audibook [Nota: “Chá, Café e etc.”, publicado pela Tcharan] e vamos tentar não destruir aquilo, a primeira chama-se ´Taça de Chá`”. O emissor denomina-se Rui Reininho e o seu parceiro é Armando Teixeira, que introduz um ritmo minimal digital através das suas máquinas analógicas, “máscara caída” e “os crisântemos no jardim”, o minimalismo da pontuação é constante, “geniais como ele”, “lágrimas”, “os seus olhos”, “confundiam-se cintilantes”; a voz de Rui Reininho ganha uma textura robótica “é remédio”, o minimalismo perdura, “deixo as cabeças nas esteiras”, “jardins”, “pela manhã”, “com leque de marfim”, pausa, “a estampa do pires igual”. A segunda canção é apresentada por Rui Reininho da seguinte forma: “Partimos então para ´Salão de Chá`”. A cenografia sonora é introduzida por Armando Teixeira e corresponde a um andamento repetitivo digno de um filme mudo que enquadra uma “menina que quer ir salão de chá com a mana”, ambas vestem vestidos rodados de seda mate e nas cabeças envergam chapéus com plumas de avestruzes albinas, “cetim”, “boutique é chique”, pausa; a voz de Rui Reininho ganha uma dimensão cósmica: “quero sapatos de ballet”, mas há algo que a perturba: “O chá está quente e queima-lhe o dente” e “queima toda a gente”. A terceira canção “Bule” tem um ritmo-melodia imposto por Armando Teixeira que corresponde a andar de bicos de pés sobre o gelo, “o bebé”, “mesa”, “e a mana refilona”, a voz processada como a de um robot de Rui Reininho assevera: “O bebé só bebe leitinho”. A delicadeza da cadência do loop permite ao espectador imaginar um bebé de fraldas a gatinhar sobre o tapete de arraiolos que sussurra “baixinho ao ouvido da mãe do bebé” que responde a si própria: “a mãe: pode ser, pode ser, pode ser”, o loop ganha uma consistência de uma temeraria hipnose infantil, “devagar e não se calava”, “beberam, beberam o leite do bule bulido”. Palmas. Rui Reininho não poderia ser mais universal: “Obrigado aos nossos poetas, poetisas e peotastras”. A quarta “Café des Anges” tem uma cadência rítmica Blues Bebop introduzida por Armando Teixeira, o fumo advém do verso: “com cigarros des Cafés des Anges”, há uma figura esguia que espera o seu cliente “sentada no fundo da janela usando um gorro vermelho”, os acordes processados por Armando Teixeira saem das colunas e Rui Reininho elucida: “cigarros apenas no Café des Anges”, a voz do narrador assinala que se deve “atentar na morena sentada”. A constante circularidade do Blues Bebop erige no palco um café como o Majestic, Rui Reininho estala os dedos como se fossem amarras lançadas à fantasia, e diz: “Jazz is not dead”. A espera é dissimulada através do consumo de “cigarros no Café des Anges”, a aceleração do Bebop impõe o acicatar do líbido por causa da memória da “morena sentada junto à janela com um belo gorro vermelho”. A quinta canção é apresentada cordialmente por Rui Reininho: “Vamos ter o nosso momento Manuel Pina”, “Café Gelo”, que confere às palavras uma melancolia de fim de tarde a beijar uma musa suicida, “esta ressurreição dissimulada”, das máquinas de Armando Teixeira emanam um universo decadente,“presque du café de la rouquette”, que remete pour la nouvelle chanson francaise-- mas usando a figura de estilo sinédoque que em “Café Gelo” corresponde a um sample que nos remete para o universo francófono datado da década de sessenta do século passado. A voz de Rui Reininho é um vibrato seco de uma lira de fancaria, “irregulares”, “onde cantam os sentimentos irregulares”, a introdução de um quarteto de violoncelos castrados incineram a consciência de uma viúva-alegre. “Pernas lentamente até um sítio e istmo escuro entro”, “dentro de mim”. Na sexta canção “Esplanada” sobressai a voz doce de Rui Reininho sobre o silêncio das máquinas de Armando Teixeira : “Bob Dylan encheu-se de dinheiro”, “como dantes”. O tango apropria-se de “Café Orfeu”, a melodia é uma silhueta de sereia coberta de um veludo tinto que lhe pinga dos lábios fruto do pecado original, “não tivesse existido”. “Não tivesse existido”. Palmas. “A Hora do Chá” e “Lugares Comuns” são emitidas das colunas do café do Cine Teatro de Estarreja em regime de gravações enquanto uma figurante serve uma chávena a cada um dos músicos. Rui Reininho não esclarece: “São poemas de Barreto de Guimarães”, e “Arca de Noé” é vilipendiada oniricamente pelos teclados e é enquadrada historicamente por Rui Reininho: “Antigamente as máquinas estavam sempre a avariar”. Palmas. “Hora X” é marcada pelo reco-reco que lhe confere uma estéctica kitsch, “à hora X à mesa Z é sempre a mesma coisa”, a fábula é representada através da presença do “senhor avestruz”, o ritmo repetitivo do reco-reco é como o trinar da cauda de uma cascavel alcoolizada, “ovos estrelados”; e a teimosia do poeta de representar que “à hora X no café Portugal é sempre a mesma coisa”, e “enquanto a ditadura, dura”, o reco-reco ganha um poder hipnótico e consequentemente uma ruptura própria do jazz, “yeah”, “à hora X no café Z é sempre a mesma coisa”. Rui Reininho esclarece sobre a autoria de “Hora X” de “Mário Cesariny” e informa: “Temos uma encomenda dos descendentes”. “Agora sim, creio eu, Pedro Mexia” , “Café”, a melodia introduzida por Armando Teixeira é uma ténue ladainha infantil, “os penaltis”, a música ganha uma espessura escura anulando pontualmente o som ingénuo, “o céu”, mas quando se dá uma união dos dois universos teoricamente opostos, há uma hipnose que nos catapulta para a determinação narrada por Rui Reininho através do seu timbre seco e impositivo como uma fatalidade, “os penaltis”. A décima primeira canção tem uma poesia de “António Gancho” e segundo Rui Reininho denomina-se de “Café da Manhã”. A entoação dos versos por parte de Rui Reininho corresponde ao de um psiquiatra apaixonado por uma inimputável, “hospital psiquiátrico”, os sons emitidos pela mesa de mistura de Armando Teixeira incorre num fluxo incidental de tão fantasmagórico, “dantes era de manhã nos jardins”, que reverbera numa progressão como uma ferida no céu, “que fica e casa”. O narrador revela a proveniência dos “nossos cadáveres no nevoeiro já estão mortos”, a volúpia da melodia negra e incidental derrama um fogo preso “de todas as partes”, e a predominância da eterna espera: “muito tempo a sós”, “é uma maneira de trabalhar”, “escrever poesia”, “nostalgia de estar em casa”, “é frequente dizer optimista”, os sons ganham um minimalismo progressivo, “metal dos cafés”, que instaura o início da hipnose, “por cá sempre bom passar a vida”, surge uma frequência de um rádio taciturno sintonizado por António Lobo Antunes que confere “A Café da Manhã” um final épico. “Pólo Norte” a décima segunda canção tem uma melodia digital pontuada pelo domínio de elementos circulares saltitantes, “o que esperas à mesa do café?”, que são subsequentemente manipulados por Armando Teixeira evocando uma ânsia que seca as veias das roseiras lisboetas, “o que esperas à mesa do café olhando?”, pausa, “um oceano imundo a fábula de papapa”. No décimo terceiro tema “Comboios” Rui Reininho dá início a uma performance acidental: “Era um papel desta cor”; “não encontro o poema”, “juro que nunca me aconteceu isto”; “mas não vou começar a chorar”. Armando Teixeira introduz sons de um comboio cósmico conduzido por psiconautas, “os comboios que fazem parte de nós que partem num instante”, que segue sobre num carril de fantasia, “lá comboios com pizzicatos”, onde circula ao sabor do vapor, “larga este beijo como um fundo lamento”, que esfumaça como uma “espécie de hip-hop no ar”. Quanto a “Du Thé, Préconisé par sa Majesté” tem a honra de ser “dedicada ao meu jantar no Caracas”. Surgem sons crepusculares, “commes des Lords”, cavalgam em Pégazos, “se approche du soutane de la Raine”, e no tabuleiro de xadrez “chacun nosso que tombo mallourosement”. Os Pegázos emitem uma onda sonora que se enrola abstractamente em vias de beijar a areia do mar salgado, “qu`un appelle du thé”, “et en portugais et en chinois”, quando salpicam a areia a melodia ganha uma expressividade Pop, “chá”, a voz de Rui Reininho ganha uma súbita modelação robótica viciada em chá preto. O décimo quinto tema “Chá Demente” é da autoria do poeta Rui Reininho, o ritmo é destinado a uma casa de chá dançante, “chá demente, talvez um chá diferente”, os versos dançam ao ritmo digital: “um chá decente”, “Chá, chá, chá”, e o acordeão adulterado surge num rasgo de ruralidade onde crescem papoilas cintilantes, “cruel”, “chá doente”, “chá diferente”; o acordeão liberta raios de sol, “chá dormente, é sempre um chá diferente”, o chá digital dançante associa-se à realidade: “Eu sou um Chá da Pérsia, tu és um chá mente”, “chá demente”. Palmas. “Serpentes” revela-se sonicamente através de um reco-reco que metricamente é apoiado num ritmo binário, conjugados equiparam-se ao Pop-jazz como se fossem serpentes de metal a circular sobre telhados de zinco. O narrador tem uma voz de testemunha ocular de um encontro inesperado, “era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra”, Armando Teixeira impõe o Pop-jazz como denominador comum, “e um dia encontraram-se e comeram-se”, que gradualmente se apropria do inconsciente onde tudo é permitido, “AAAAA”, “simplesmente comeram-se”, surgem sons arabescos, “a lição é: não podemos odiar ninguém, ou então…”, “AAA”; e a segunda lição sobre o registo digital extravagante, “ter muito cuidado com o que comemos, ou então é preciso ter muito cuidado com o que se come”, “AAA”, “muito cuidado com o que nos come”. Palmas. Rui Reininho discursa cordialmente: “Obrigado, pelo carinho com que nos receberam”. Palmas. O décimo sétimo tema tem o título: “O Estranho Caso do Amante Preguiçoso”, com poema Pop de Rui Reininho. Armando Teixeira coloca uma agulha digital sobre o vinil que é riscado, as programações são de um groove circular dengoso, “e sigo-te”; a agulha tem unhas de gel, “falo e não falo”, o groove Pop circula por entre o refrão: “Cheiras bem? Cheiras bem? Então vem até Lisboa”. “Sabes bem”, e o saxofone digital oferece-lhe uma repentina beleza psico-activa, “Cheiras bem? Seio bem, vem até Lisboa”, as programações adensam alegremente o verso, “sabes bem esta Lisboa”. O groove é pontualmente e progressivamente curto, e a voz de Rui Reininho é grave: “Os dois”, “acordo às três”, “acordo à toa”, “limpo-te os pés”, o groove liberta-se da sua pontualidade e regenera-se através da Pop. “Cheiras bem? Cheiras bem? Então vem, até Lisboa”, o saxofone sola como se fosse o uivo de um homem sozinho no Frágil, “sabes quem, sabes bem esta Lisboa”. A décima oitava canção “Dunas” tem segundo Rui Reininho: “Uma das frases mais geniais da minha carreira, espero que me acompanhem nesta”. O ritmo é dois por dois e correspondente a uma frequência kitsch, “um resto de boa noite”, que poderia sair das colunas de um baile na província; uma flauta de pan destaca-se da batida, “então aqui vai”. Rui Reininho coloca a voz num falsete tórrido, “as dunas são como divãs, biombos indiscretos”, a toada popular é contínua, “sentados nas dunas alheios a tudo”, “pensamentos lavados”, “saltamos rochedos”; e por mandamento de Armando Teixeira “Dunas” ganha uma volúpia easy listening, “em câmara lenta como na TV”, “dunas”, “nas dunas roendo maçãs, a ver garrafas de óleo boiando vazias nas ondas da manhã”. O público num coro discreto entoa “dunas”, o órgão de uma igreja numa falécia adensa as cores tépidas mas alegres e prenuncia um fim de tarde de pôr de sol ao rubro, público: “Dunas”. Rui Reininho: “sós nas dunas”. Público e Rui Reininho: “Nas dunas”. “Patchiwara”. Rui Reininho: “Saltamos rochedos”; “Como na TV”; “Chá, chá, chá”.
Rui Reininho e Armando Teixeira, “Chá, Café e etc.”, 27 de Fevereiro, Café do Cine Teatro de Estarreja @ Estarreja
Rui Reininho e Armando Teixeira, “Chá, Café e etc.”, 27 de Fevereiro, Café do Cine Teatro de Estarreja @ Estarreja
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