O Parque da cidade do Porto acolhe a quarta edição do festival NOS Primavera Sound em que se inclui Patti Smith a musa de Robert Marplethorpe, testemunha ocular de uma Nova Iorque da década de 60 do século XX que fervilhava em criatividade e em luxuria. A poetisa americana surge da esquerda do palco acompanhada por quatro músicos: o homem da guitarra eléctrica de cabeleira comprida e esbranquiçada tal como a da Patti Smith, um outro ostenta o baixo eléctrico e outros dois que sentam-se respectivamente nos bancos do teclado e da bateria. O sol ilumina gloriosamente o palco e o vento expira a maresia de um mar que não se encontra encarapelado, Patti Smith coloca no seu rosto ossudo uns óculos escuros para se proteger da luminosidade primaveril; a banda prepara-se para dar início a “Gloria: In Excelsis Deo”, o primeiro tema do álbum “Horses” (1975) que vêm ao Porto apresentar na íntegra. Patti Smith cumprimenta alegremente a multidão: “Hello everybody!”; “olá!”. Sobre o piano lento de “Gloria: In Excelsis Deo”, Patti Smith canta como se estivesse a incendiar uma floresta de enganos: “Jesus died for somebody's sins but not mine”, o piano continua a impor a melodia amordaçada pela alegria, “They belong to me, me”, o compasso do bombo encaixa-se no piano e sublinha: “me”; “I walk in a room, you know I look so proud”; aparentemente Patti Smith não vê o seu reflexo no espelho do quarto de banho do Chelsea Hotel: “She looks so fine”; o ritmo acelera-se e a canção ganha densidade emocional, ferida aberta pela voz angustiante de Patti Smith: “Walking down the street”; “here she comes”; coro: “OOOO”. “She looks so fine”. Há um recrudescer do ritmo e consequentemente as cores rubras dos acordes de “Gloria: In Excelsis Deo” ganham um dramatismo Pop que é sublinhado pelo coro: “OOOO”, resposta da diva, “I'm gonna make her mine”, repete angustiantemente: “She told me her name”; “AIAIAI”. Patti Smith dança enquanto os músicos transcrevem a Pop para a transgressão Rock, antes do fim do verso: “And her name is, and her name is, and her name is, and her name is G-L-O-R-I-A”, o público grita libertariamente: “Glória”; e os dois cantos imiscuem-se livremente: “G-L-O-R-I-A”; público: “Gloria”; Patti Smith: “G-L-O-R-I-A”; coro: “Gloria”; Patti Smith: “G-L-O-R-I-A”. Patti Smith junta os braços ao seu tronco, que veste um blazer preto, a agradecer ao: “Porto”. Antes da segunda canção da tarde, "Redondo Beach", gera-se a primeira ovação da tarde; a toada espaçada do piano e da guitarra eléctrica revelam um ritmo reggae, o groove Pop é fornecido pela bateria acompanhado por um baixo eléctrico encorpado. “Late afternoon, dreaming hotel”; e sobre os acordes alegres canta: “I was looking for you, are you gone gone?”; o break da bateria não retira “Redondo Beach” do seu ritmo lento, “Well, you never returned, oh you know what I mean”; a bateria sublinha a Pop e a guitarra domina a toada reggae e sobre este composto dança a poesia de Patti Smith: “On Redondo Beach and everyone is so sad”. A guitarra eléctrica suporta melodicamente o verso entre da angustia relacionada com a rotina: “are you gone gone?”; “gone, gone”. “preaty litle girl”; “she was the victim of sweet suicide”. O ritmo Pop joga às escondidas com o reggae como se fossem duas máscaras sobrepostas que aparecem e desaparecem intercaladamente--- “you”, coro: “UUUU”; “I was looking for you”; e eventualmente: “Desk Clerk told me girl was washed up”, “are you gone, gone”?; coro: “UUUU”-- que oferece à canção um estado de espírito arrepiante; “Went to my room, started to cry”, “for you”, e sobre a melodia Pop reggae: “Gone gone, gone gone, good-bye”. Ouvem-se gritos e os braços ao alto da multidão que agradecem à cantora norte americana a bênção da sua presença alegre e comunicativa. Antes da terceira canção, Patti Smith mune-se de uma folha de papel branca onde consta a letra de “Birdland”; o piano insere umas notas corridas mas lentas, a sua voz canta/fala e narra: “His father died and left him a little farm in New England”; do piano surgem notas que são tocadas de forma decrescente/inversa aos tocados inicialmente criando um dramatismo pejado de suspense, “because when he looked up they started to slip”; o baixo, a guitarra eléctrica e com a anuência da bateria revelam uma consistência Pop mas mantém-se subjugados sentimentalmente à dor preguiçosa do piano, “because he was not human, he was not human”; num sponken word frio e dilacerante observa: “And then the little boy's face lit up with such naked joy”; insurge-se um crescendo que gradualmente transcreve na melodia Pop melancólica, “No, daddy, don't leave me here alone”, e o prog-rock é inscrito e dessa forma acrescenta uma agressividade que se imiscui inscientemente no consciente, “Pushing it all out like latex cartoon, am I all alone in this generation?”; uma perspectiva sobre a alienação que domina a população globalizada: “We'll just be dreaming of animation night and day”. “Birdland” continua dominada pelo rock com laivos incisivos de prog, “The son, the sign, the cross”, a canção ganha uma suavidade Pop que acompanha a repetição do termo: “up, up, up, up, up, up”, Patti Smith levanta o braço direito e com o indicador aponta para: “up”. Por fim, o quarteto de instrumentistas revelam um blues/lento mas estranho por ter origem na miscigenação entre a Pop e o Rock (prog), “And where there were eyes were just two white opals, two white opals”, coloca as mãos sobre os olhos como se desconhece-se a sua própria narrativa, “Up up up up up up”, o público acompanha a sua gestualidade e entoa a letra que é rap, “Sha da do wop, da shaman do way, sha da do wop, da shaman do way”, “birdland”. Em “Free Money” é inicialmente o piano que intervém lentamente como se estivesse a retirar pétalas de um girassol: “Every night before I go to sleep”; “Find a ticket, win a lottery”, a lullaby encantada é levemente imposta pelas notas doces do piano, após o canto de sereia acutilante sustenido: “Cash them in and buy you all the things you need”, a bateria com a sua cadência bombeada pelos bombos substitui as tonalidades doces e a espaços agrestes do piano e com conivência estilística do baixo e da guitarra eléctrica assumem tonalidades Pop/Rock: Pop porque incorporam dinamicamente os acordes do piano, Rock porque instituem uma agressividade melodia de salutar. “I know they're stolen, but I don't feel bad”. “Oh, baby, it would mean so much to me/ Oh, baby, to buy you all the things you need for free”. Em regime de spoken word Patti Smith refere: “I'll buy you a jet plane, baby”. “And we'll roll, dream, roll, dream, roll, roll, dream, dream”, o coro responde-lhe: “Dreaming”. É a guitarra numa frequência agressiva que domina o composto sónico: “Find a ticket, win a lottery”; o fluxo dominado pela guitarra eléctrica é de uma aspereza dilacerante, coro: “dreaming”. Patti Smith num timbre diáfano do qual desconhecemos o seu género sexual: “Let's dream it, we'll dream it for free, free money/Free money, free money, free money, Free money, free money, free money, free”-- canto de uma ideologia utopica inscrita numa poetica Rock and Roll. Ovação. A quinta canção “Kimberly”, consta segundo Patti Smith no “Side B” do álbum “Horses”; quem sobressai do quarteto de músicos é a bateria num ritmo dois por dois, mas é o piano e a guitarra quem desenham a melodia Pop com alguns laivos perenes de reggae, “the sky will split/And the planets will shift”, o break da bateria encaixa-se na melodia Pop-- “the sky is falling, I don't mind, I don't mind”, “OOOO”-- que é hiperbolizada pela guitarra eléctrica, “Oh baby, I remember when you were born/ It was dawn and the storm settled in my belly”; “And I lit a match and the void went flash”; “Balls of jade dropped and existence stopped, stopped, stop, stop”. A bateria executa novamente um break que apenas serve para incutir a “Kimberly” um repente que a faz baloiçar numa ténue represa Pop, “I was going crazy, so crazy I knew I could break through with you”, sublinhada pelo trinar eléctrico da guitarra eléctrica: “fire on a mental plane”; a represa liberta a contenção rítmica e o rock domina, “The palm trees fall into the sea”; “As long as you're safe, Kimberly”; “OOO”. Patti Smith dança e empunha o microfone para os seus lábios húmidos: “Kimberly”, “OOOO”. Quanto a “Break it Up” Patti Smith é taxativa: “This song was written in loving memory of Jim Morrison”. O piano assume uma cadência lenta, “Car stopped in a clearing”, a bateria introduz um ritmo dormente, “I saw the boy break out of his skin”. Coro: “Break it”; as harmonias da guitarra eléctrica enunciam uma primavera tingida de cores outonais, “Break it up, don't talk to me that way”, o seu solo agudo é descrito como se fosse um raio resultante da reunião de duas nuvens antagónicas, “I could hear the angel calling”; após a repetida intromissão da guitarra eléctrica sobre o baixo e a bateria que suportam o coro: “Break it up”, Patti Smith relata suavemente: “Break it up, oh, I want to feel you”. A tragédia surge aos nossos olhos secos de esperança: “The boy disappeared”, a guitarra eléctrica revela-se como se fosse uma alma incandescente a aceder a um céu que nunca se realizou em qualquer pôr-do-sol-- a cadência mantém-se funebremente Pop-- Patti Smith clama: “I cried, ´Take me please!`". Coro: “Breaking up”; a guitarra eléctrica realiza um solo épico que congrega uma dor tão excessiva quanto real. Palmas. A penúltima canção que consta em “Horses” é "Land: Horses / Land of a Thousand Dances / La Mer(de)". O primeiro momento é dominado pela guitarra eléctrica que discorre através de uma semi-distorção em delay: “The boy was in the hallway drinking a glass of tea/From the other end of the hallway a rhythm was generating”, “coming”. Patti discursa assertivamente que somos vítimas de “governments! Corporations!”; “Corruption in the world”, o público pronuncia-se em uníssono e responder-lhe como se Patti Smith fosse a líder de um partido constituído por activistas do Rock and Roll. A guitarra continua a dominar, mas num ritmo crispado, “Johnny”; “The boy disappeared, Johnny fell on his knees”, palmas, a solidão é-lhe delirante de tão doentia: “started crashing his head against the locker”. Quando Patti Smith canta, “horses”, há a marcação do bombo que é o alicerce a partir do qual o piano, guitarra e o baixo eléctrico descrevem um conjunto de acordes puramente rock e este é revertido para uma cadência mais lenta, violentada pela frequência agonizantemente da guitarra eléctrica (wah wah com delay), “Roll down on her back, got to lose control, got to lose control”, ovação, a canção ganha uma embriaguez imposta pela bicefalia Pop/Rock, “fucking games”; “Life is filled with holes, Johnny's laying there, his sperm coffin”; quando informa que Johnny está “dancing in Porto”, recebe um sonoro e pronunciado espanto, estupefactos por fazerem parte da narrativa trágica sobre Johnny. O piano reincide os acordes Pop de “Gloria: In Excelsis Deo”, a multidão delira e canta: “Gloria”. Patti Smith pronuncia-se tragicamente livre: “Jesus died for somebody's sins but not mine”, as palmas estalam como o chicote aplicado sobre o dorso branco de Jesus da Nazaré, o público delira, “glória”, hipnotizados por uma estranha beleza épica Pop, “G-l-or-i-a”. “G-l-o-r-i-a”, palmas e por fim uma violenta ovação: “Thank you!”. "Elegie" é a “last song from ´Horses`” e descreve-a como: “is a little song”, dedica-a: “in loving memory of Jimi Hendrix”; “and to all the people I love”, “to all of them”. O músico da bateria passa a ostentar uma guitarra eléctrica que se soma à pré-existente e ao baixo eléctrico. O piano introduz uma melodia de uma valsa tão suave quanto esotérica, com a pontuação de uma das guitarras que a sublinha delicadamente e o baixo confere-lhe um andamento longitudinal, a sua voz é um canto profundamente expressivo, “I just don't know what to do tonight”, as guitarras revelam-se poeticamente como se fossem violinos introvertidos. “There must be something I can dream tonight”; “All the fire is frozen yet still I have the will”, “UUUU”, uma das guitarras sobressai num crivo Blues mas sem redundar no cliché, Patti Smith em regime de spoken word: “Trumpets, violins”; “but I think it's sad, it's much too bad/That our friends can't be with us today”. Enumera diversas figuras míticas da cultura Rock and Roll: “Lou Reed”, palmas, “Joe Strummer”, palmas, “Sid Vicious”, palmas, “Fred Sonic Smith”, palmas; novamente lamenta: “That our friends can't be with us today”. Patti Smith e a sua banda dão por encerrado o capítulo das canções que compõe “Horses”. “Because the Night” é o primeiro bónus da tarde e tem um inicio dominado pelo piano, “Take me now baby here as I am”; “Desire is hunger is the fire I breathe”; a angustia melancólica trasveste-se de uma alegria Pop imposta pelo break da bateria com devida parcimónia dos restantes instrumentistas, “Come on now try and understand”; “Take my hand come undercover”; numa festividade Pop que encontra reflexo numa multidão enfeitiçada por Patti Smith, quando canta o refrão: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to lust/ Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”; coro: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”, deflagra uma histeria generalizada que a acompanha irrepreensivelmente; sobrevém o piano e o baixo resumindo pacientemente os seus acordes, “Love is a ring, the telefone”; “Here in our bed until the morning comes”. Patti Smith canta em unisso com o público: “The way I feel under your command”; o recrudescer do ritmo impregna-a de uma urgência inesperada: “feel”; “take my hands”; “Can't touch you now, can't touch you now”; empunha o microfone ao público: “Because the night belongs to lovers/ Because the night belongs to us”. Ovação. “People Have The Power” é dotada de uma melodia Pop com as guitarras eléctricas a revelarem-se rock, Patti Smith dança sobre a sua cadência alegre, “I was dreaming in my dreaming”, ganha uma progressão que mistura a pop com o rock, “And I awakened to the cry”, emancipam-se epicamente quando Patti Smith canta: “And the people have the power”, que é gritado em uníssono pela multidão; o baixo eléctrico ganha supremacia sobre os outros instrumentos que expectantes se secundarizam, “Vengeful aspects became suspect”, o baixo impõe-se como denominador comum imolando os acordes festivos, “And they laid among the stars”; “dust”, ouve-se o solo do baixo a acompanhado por palmas ritmicamente sintonizadas, “cry”. A banda redesenha a melodia pop/rock que extravasa com o refrão cantado pelo coro: “People have the power/People have the power”; “to dream”; a banda encara o público saltitante e encetam um contínuo assalto bíblico à democracia: “People have the power”. Patti Smith não poderia ser mais explícita: “Don`t forget it!”. A última ovação da tarde despede os quatro músicos, Patti Smith junta e ergue as mãos simbolicamente numa exortação de sincera e profunda gratitude.
“Horses”, Patti Smith and Band, NOS Primavera Sound Porto, 5 de Junho@ Porto
domingo, 7 de junho de 2015
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