segunda-feira, 23 de maio de 2016

Broken Music

O edifício do Salão Brazil na baixa de Coimbra está absorvido por um chumbo nebuloso. No palco o curador Carlos Dias do Mono/Stereo- O Maior Pequeno Festival do Mundo apresenta as bandas seleccionadas para a tarde: “Subway Riders; Mike Up; Ajigsaw; Surma”. “À noite; temos umas bandas porreiras”. Mas antes “vamos ter o nosso momento poético Gigas”. “Depois das sete as montras são mais íntimas/A vergonha de comprar não existe/E a luz toma mais brilho/E utiliza cada um dos objectos”. A perspectiva crítica sobre a sociedade continua, pela pena de um outro poeta: “É preciso controlar o habitante/ Quantos metros quadrados são precisos em caso de acidente/Que o seu pulso bata a um ritmo conveniente/O habitante é sempre uma criança; a liberdade condicional/Onde passam os domingos/É preciso controlar o habitante até aos limites extremos da paciência; mesmo à custa do seu indecifrável medo”. De novo toma os microfones Carlos Dias mas como frontman dos Subway Riders, que informa o público que vão contar com a “Paulinha [Nozzari] na bateria”, já que, “o nosso baterista [Pedro Chau]; que foi informado sobre o concerto, decidiu não vir”. A primeira canção é “uma música que nunca fizemos”, versão kitsch de “I Can`t Get no Satisfaction”, desconstruída pelas castanholas do Calhau e a guitarra eléctrica de Victor Torpedo. A segunda é surf pop e narra a estória de um “Pato”: “Ninguém gosta de mim”, sou o “Calimero, o pato louco de que ninguém gostaaaa”; reverberam as cores de Malibu em Kodak de 1960; “ninguém gosta de mim”, a corneta do Calhau responde ao patinho feio. Carlos Dias convida a subir ao palco: “Jorri que nunca tocou connosco”; e promete: “Vamos tocar uma música que é o nosso maior sucesso”. “Mono/Stereo”, o hino do festival é apresentado através de cores negras, que progridem até se tornarem radiosas, fruto da intromissão visceral das guitarras eléctricas de Victor Torpedo e Calhau. Carlos Dias resume a prestação “foi mais uma grande actuação dos Subway Riders!”. É a vez do regresso de Gigas: “Vou ler um texto da minha autoria”: “uma muralha de inimigos”; “já me entendi melhor a mim próprio”; “insisti nessa torpe ideia de luta”. Das janelas do Salão Brazil, “vagas de modorra que fingem ser cor”; “prefiro um turbilhão de erros”. Mike Up é encabeçado por Mike, que se faz acompanhar pela sua professora de musicoterapia Paula Nozzari; ambos na bateria; uma dupla em que predomina o jogo rítmico que permite a Mike criar o seu espaço na métrica; há muita alegria contagiante em palco, uma confiança extrema que é fundamental para qualquer músico possa crescer. Na segunda música são acompanhados por Jorri, Victor Torpedo, Calhau; iniciam numa toada tristemente infantil para gradualmente desenharem um blues frágil. Gigas agradece ao “Carlos Dias por me continuar a convidar”. E declama: “Uma rima aleatória de aragem”; “que nos encolhe à escala”; “uma suprema solidão”; “a penumbra pelos acidentes anteriores”; “torna-nos quase só uma alma”; “sobres as dunas, sobre as ruas”; “e à noite erguemo-nos contra a escuridão; “portas para o futuro”; “a morte é certa e o que interessa é o desenho do túmulo”. Fim. Gigas lê um outro poema: “Isto de uma inacabada beleza”; “canhões em palavra”; “de tolos de almas”; “esplendor de palavras”; “meu íntimo muito claro”; “de ser Deus”; “ser morte”. “Isto de uma solidão fúnebre acompanhado por todos vós”. “Merda”. “Da liberdade de cada um”. “A fumar a vida como um rio”. “Sol sol da tarde de todos os dias da minha aventura”. Jorri e João Rui sobem ao palco e é este último que toma a palavra: “(Boa tarde). Somos os Ajigsaw”; acompanhados por Victor Torpedo, Calhau e Paula Nozzari. A narrativa da primeira canção é substancialmente negra; seguindo uma métrica de conto western. A segunda afunila a perspectiva da anterior, sublinhada pela guitarra épica de Victor Torpedo. O João Rui dirige-se directamente ao “Carlos [Dias] que pediu um concerto especial e decidimos não trazer a Tracy Vandal”, pura ironia; de seguida informa que é “o aniversário da Tracy”. A terceira tem uma pulsão predominantemente rock, em que se destaca a guitarra eléctrica de Victor Torpedo e o baixo eléctrico do Calhau; a letra é uma narrativa obscura. A quarta trilha uma similar perspectiva rock; mas os Ajigsaw revelam-se através de uma verve visceral, um muro de insustentável beleza. A quinta é “dedicada a esta cidade”; mergulham numa delicadeza rock, por vezes frágil; e em crescendo intrometem-na num Rock and Roll; até ao fim. A sexta alicerça-se numa melodia slow com timbre predominantemente acústico. A sétima é um slow dramático, “bed of roses”, que progridem em crescendo até ao epílogo. A oitava tem um compasso dois por dois que instala uma lentidão que é seguida pelos restantes instrumentos, e gradualmente torna-se em algo complexo, desembocando no rock. A nona é adornada pelo teclado de Jorri, a bateria tem uma cadência lenta, e a intensidade viril é sublinhada pela guitarra eléctrica de Victor Torpedo. João Rui informa os presentes de que “deveria estar aqui a Tracy Vandal; e vamos desejar-lhe um feliz aniversário!”. A última tem uma reverberação Rock and Roll, dona de uma tempestade perfeita, a roçar o épico. Regressa ao palco o Gigas que não deambula à procura de uma garrafa de “gin”, numa “prateleira baixa”, encontra-a e “olho para ela”, precisa de “tempo”, e não domina o “espaço”. Subitamente “ergo-me com toda a segurança” , a metáfora: “Como quem tem sede de tudo”. Dá um passo: “Para o outro lado/Para o outro lado/Para o outro lado”. Do lado de lá “tem prazer, dor”; “o outro lado tem música”. “Vamos ser felizes naquelas horas certas”. “O outro lado não tem nada”. O Gigas educadamente informa que o próximo poema “é uma cena hardcore apesar de ainda ser dia”; e tão pouco é um hino à procriação: “Eu guardo um filho na prateleira visível da minha sala de estar”; o emissor deseja “que o seu silêncio me ordene a minha vontade”; no reflexo “guardo um cabrão no espelho do W.C”, e, “que o seu silêncio grite essa beleza gritante de volta”. A depressão é a “beleza de todos os dias”; “de todos os dias”. O Gigas expira para o microfone uma brisa invernosa, “frio glacial que se abrem-tas portas”; um fluxo “de sombras que definem todas as solidões”; a mentira “voltas sempre em cada passo”. A conclusão: “E arrastamos a existência em confronto com um universo inteiro”. Surma é a quarta convidada musical do Mono/Stereo, tem à sua volta duas mesas com diversos instrumentos digitais, e à sua frente um microfone tapado por uma pano florido. É a partir da perífrase que se inicia a primeira canção: um loop intercala com o baixo e com o teclado de onde decorre a melodia; o loop dá lugar a uma batida synth, violinos são aspergidos e rematam um edifico com pináculos. O deserto é apresentado com tonalidades ténues; Surma canta para o microfone e é tão esotérico quanto o canto das tágides do Tejo. A segunda canção toma por princípio um ritmo synth em crescendo com a voz de Surma a invocar uma paisagem abstracta, e procura uma resposta na guitarra eléctrica, num solo neo-blues. Débora Umbelino apresenta-se: “Eu sou a Surma; queria agradecer ao Carlos [Dias] o convite”. A introversão como expressão prossegue na terceira canção com uns sintetizadores kitschs, que afagam a guitarra eléctrica tocada por Surma, a sua voz divaga levemente; o recrudescer do ritmo é pautado pelo solo da guitarra. A quarta é a “cover de uma das canções preferidas; espero que gostem”. Um quadro lúdico dominado pelos teclados com Surma a cantar como uma soprano digital. A quinta com um pendor sythn substancialmente pesado, com os sintetizadores a emoldura-la; a guitarra sola revirando o rock. A sexta, com um ritmo afro beat convida à dança, o baixo eléctrico de Surma a ser um pêndulo exótico; que é posteriormente trocado pela guitarra eléctrica; e finaliza-a com um baixo semi-distorcido, num clímax vívido. A sétima canção assenta num break beat, a voz processada de Surma é a de um robot, com uma de sintetizadores em crescendo, “uuuuu”, não iludindo a distorção, “uuu”. Na oitava recorre à introdução dos diversos elementos até que o quadro fica completo e fixo no ar, um avião irrompe das malhas de metal e sobrevoa-nos sem destino. Carlos Dias esclarece: “Termina assim a primeira parte do Mono/Stereo”.

Gigas sobe ao palco do Salão Brazil com o rosto pintado de azul, sob os focos claros parece uma máscara africana de uma tribo antropófaga. “Os dias da corja”; um insulto inofensivo: “A lucidez é uma puta”; “que me escova os dentes quando tenho preguiça”; “aguardente fria”; “de um piegas qualquer”; “asmático”. “Prefiro jogar à roleta russa”; “dói-me os dentes de tanto espalhafato”. Os primeiros convidados da noite são os Alien Church, um quarteto encabeçado por Marquis Cha Cha e Johnny Luv, com a particularidade da bateria ser ocupada por uma mulher baptizada de Domka Torga. A primeira canção tem uma secção rítmica encorpada em crescendo, com o teclado a mimetizar um órgão de igreja, entrecortados pela guitarra semi-distorcida de Johnny Luv; o seu dramatismo cromático é iluminado por velas a arder em nome de uma promessa. A segunda canção desenha uma melodia fúnebre, mas sem os lampejos descritivos da canção anterior. A terceira tem uma estrutura complexa, um slow fúnebre para baile de máscaras, “to be”. A quarta é um jogo intercalado dos instrumentos, marcado por um baixo eléctrico e conspurcado pela guitarra fantasmagórica de Johnny Luv. Na quinta encarnam uma combustão repentina de um corpo humano, “I`m fading away”. Na sexta exploram ritmos dançantes, “alienation”; e quase redundam num ska fúnebre. A sétima é uma trip num carro fúnebre onde por vezes reina a cacofonia, “out”; a viagem parece interminável. O Gigas regressa para se expressar: “Embriaguez”; “o meu bem”; “o meu tecto”; “já não tropeço”; “pela primeira vez”; “sem risos de crianças”; “tortura”; “feita ao nosso corpo e à nossa alma”. “Ciência”; “violência”. “Árvore do bem e do mal”. “E isto acaba”. “E isto acaba”. “Acaba com uma debandada de pernas”. “Como se fossem anjos de fogo e de neve”. “Breve vingança da embriaguez”. “Assiste-me outrooutroutrooutro”. “Eis o tempo dos assassinos”. Segundo poema revela um homem “que pendura o chapéu”, que se “desloca pelo soalho da casa tua casa”, onde “reinam por aí os demónios”. “Sonhos”. “Sonhos”. Sou “um silêncio inacabado dentro de ti”. “O nunca tem sempre razão”. “És livre”. A segunda banda da noite denomina-se de Wipeout Beat, três rapazes diante dos respectivos Cassios. A primeira canção é uma marcha fúnebre com laivos de uma tétrica música clássica, assumindo o minimalismo como estética. A segunda tem a voz de Carlos Dias: “She`s a bad girl”, com os teclados numa proporção kitsch rock, que encontra destaque na guitarra eléctrica do Calhau; este submete-a a um corrosivo Krautrock através de um o solo incendiário. A terceira tem um beat synth, com os teclados repetitivos a serem decompostos pela guitarra eléctrica do Calhau; formam gradualmente uma massa sonora pós-noise, mas devidamente contida num wall of sound dramático; “I was dead”. A quarta é uma canção de embalar para jovens, “yes is true I love you”; “I give you all”; Kraut Yé-Yé. A quinta é um slow synth blues: “I`m so lonely I could die”. A sexta tem uma progressão synth com a guitarra eléctrica de Calhau a reforçar a sua vertente raw; Miguel Padilha: “I`m so furious”; Carlos Dias em falseto: “I`m so furious”. A última canção tem um beat dançante que progride paralelamente à guitarra de Calhau revelando Kraut noise. Gigas regressa ao palco para diagnosticar: “Ele estava morto”; “nunca viveu”; “à procura da causa”; “nunca viu a causa”. “ouvimos o choro das crianças do gueto”; “morreu à procura da causa”; “o seu corpo foi encontrado por toda a cidade à procura da causa”. Eu “na Praça da República”, “ele morreu à procura da causa”, “nos subúrbios de uma overdose”, “ele nunca percebeu que era a causa”. No segundo poema Gigas é “um rio que trepa”: “Os vãos são penhascos iluminados por pinhais”; “das janelas cerradas”; “peças de roupa se esquecem dos corpos”; “a solidão” pertence a “esses que tomam veneno”, “os olhos semi-cerram os cansaços”, “as pessoas emanam-se por entre a ramagem”, “de morrer muito”, “de âncoras no mundo”, o meu “coração é uma alameda vazia”, eu vou “desistir de terra firme”, a voz perde-se ofegante de dor. Os últimos convidados da noite são os 800 Gondomar, um trio que se divide entre o baixo e a guitarra eléctrica e por uma bateria. A primeira canção tem como ponto a distorção dos instrumentos com uma bateria furiosa, servido num bloco tão violento quanto um murro no estômago. A segunda tem um balanço pop mas que é abocanhado pelos instrumentos de cordas de arame farpado, as vozes intercaladas e em eco como o chamamento de um Belzebu sexy. A terceira é um carburante para cadáveres de jovens narcisos, com variações rítmicas e vozes dantescas: “AAA”. A quarta é punk, com a voz do baterista a dominar: “Não sei”. O coro dos irmãos do mal respondem-lhe: “O que fazer?”. A quinta adiciona ao punk visceral uma vertente trash, com variações rítmicas dilacerantes, “não sei dançar”, e um solo da guitarra é impresso em papel assinado pelo terceiro Reich, o baixo faz-lhe uma vénia e “1-2-3” e explodem num fôlego adicionando a um solo épico da guitarra eléctrica. O baterista faz um apelo ao público: “Temos aí uma cassete, ajudem-nos a comer”. A sexta e a sétima são irmãs simiescas, corrosivas como ácido a arder. A oitava é uma “música espanhola”, jogam com o salero da Andaluzia mas numa perspectiva de escárnio, “solo se vive una vez”. A nona encontra o baterista a cantar por entre o público, uma figura do mundial de futebol colega do Maradona quando snifava coca e revelava o seu génio, executam um blues tão heterodoxo quanto irreverente. Sobe ao palco o Carlos Dias: “Acaba assim o Mono/Setero”, mas os 800 Gondomar “vão tocar uma rapidinha”.

Mono/Stereo- O Maior Pequeno Festival do Mundo, 21 de Maio, Salão Brazil @ Coimbra